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VIDAS DE PRAÇA: Flanelinhas e Exclusão Social.
Square Lives: Flanelinhas and Social Exclusion

 

Psicólogo graduado pela Universidade Estácio de Sá.
Volta Redonda – RJ
(Brasil)

 

Resumo

O artigo questiona a legitimação do discurso excludente, a criminalização e desqualificação do trabalho informal em espaço público. Tomamos como ponto de partida o estudo de um período de acontecimentos no município de Volta Redonda, estado do Rio de Janeiro, quando uma série de operações policiais visou coibir a atuação de ‘flanelinhas’ em pontos de um dos bairros centrais da cidade. Foi realizada contextualização a partir da análise de informações e artigos jornalísticos divulgados em publicações oficiais e veículos de comunicação em massa. Para apreciação de dados subjetivos, realizamos pesquisa de campo junto a flanelinhas em um dos pontos mais atingidos pelas operações citadas, coletando material por meio de entrevistas, o que foi submetido à análise de conteúdo. Os resultados apontam para a tenuidade da fronteira entre o discurso da ordem pública e a exclusão social, e o sofrimento ético-político de indivíduos marginalizados durante/após uma trajetória marcada por violências silenciosas.

PALAVRAS-CHAVE: Exclusão Social, Ideologia, Trabalho Informal, Cidadania.

 

Resumen

El artículo cuestiona la legitimidad del discurso excluyente, la criminalización y descalificación del trabajo informal en el espacio público. Tomamos como punto de partida el estudio de un periodo de acontecimientos en el municipio de Vuelta Redonda, estado de Río de Janeiro, cuando una serie de operaciones policiales destinadas a frenar la actuación de “flanelinhas”1 en puntos de uno de los dos barrios céntricos de la ciudad. Fue realizada contextualizada a partir del análisis de informaciones y artículos periodísticos divulgados en publicaciones oficiales y medios de comunicación masiva. Para observar los datos subjetivos, realizamos investigación de campo junto la flanelinhas en uno de los puntos más alcanzados por las operaciones citadas, recolectando material por medio de entrevistas, lo que fue sometido al análisis de contenido. Los resultados apuntan para la fragilidad de la frontera entre el discurso del orden público y la exclusión social, y el sufrimiento ético-político de los individuos marginados durante/después de una trayectoria marcada por violencias silenciosas.

PALABRAS CLAVES: Exclusión social, Ideología, Trabajo Informal, Ciudadanía

 

Abstract

The article questions the legitimacy of exclusionary discourse, the criminalization and disqualification of informal work in public space. We took as its starting point the study of a period marked by events in the city of Volta Redonda, State of Rio de Janeiro, when a series of police operations aimed to cohibit the activities of 'flanelinhas' at one of the central districts of the city. A contextualization was done from the analysis of information and journalistic articles divulged in official publications and vehicles of mass communication. For valuation of subjective data, we conducted a field research with flanelinhas in one of the sites more affected by the operations mentioned, collecting material through interviews, which was submitted to content analysis. The results indicate the tenuity of the frontier between the discourse of public order and social exclusion, and the ethical-political suffering of individuals marginalized during/after a career marked by silent violences.

KEYWORDS: Social Exclusion, Ideology, Informal Work, Citizenship.

 

 

VIDAS DE PRAÇA.

Flanelinhas e Exclusão Social. 2

 

1. A SITUAÇÃO

Na edição de 26 de maio do ‘Jornal Foco Regional’, publicado semanalmente na cidade de Volta Redonda, um colunista registrava:

“Os flanelinhas que trabalham na Vila Santa Cecília, em Volta Redonda, estão distribuindo agora um panfleto aos motoristas durante suas abordagens. O material destaca, em letras garrafais, que "a lei garante (o trabalho deles)", e que "Cidadania é para todos". (...) No texto eles afirmam que são perseguidos, sempre sofrem calados todo tipo de discriminação e injustiça, que são confundidos com criminosos e rotulados como cúmplices dos furtos de veículos. Quem assina a carta aberta à população é o Movimento dos Flanelinhas de Volta Redonda. Sem comentários.”

 

Foi neste mesmo dia 26 que estivemos pela primeira vez em contato com os trabalhadores informais da Vila Santa Cecília, considerado o bairro mais importante da cidade. Nosso interesse partia de uma díade de matérias noticiadas em 22 e 29 de março, no ‘Jornal Aqui’, outra publicação semanal da cidade, onde denunciava-se que flanelinhas 3 atuavam, durante o horário de funcionamento do parquímetro oficial, acrescentando novos tickets antes que os fiscais verificassem o tempo excedido, o que angariava gorjetas de motoristas. Na primeira das reportagens, os flanelinhas eram representados como uma formação corporativa, rotulados de achacadores, e pedia-se intervenção do poder público para impedi-los de atuarem. Na semana seguinte, na outra matéria, os flanelinhas figuravam como “praga urbana”, nomeação de autoria atribuída ao Coronel Comandante do batalhão da Polícia Militar local, que dizia:

“Sem denuncia formalizada, resta à PM mandar os flanelinhas se retirarem da área. Os que reclamam ou insistem são colocados num ônibus e levados a uma delegacia, para identificação e verificação de possíveis antecedentes criminais.”

 

O que suscitava curiosidade era a direção taxativa tomada desde a primeira matéria, que asseverava a ilicitude da atuação dos trabalhadores em geral:

“De fato, alguns motoristas até gostam da idéia, mesmo sabendo que a atividade dos flanelinhas é uma espécie de achaque, um crime.”

 

Em certo momento da segunda reportagem, eram conferidas afirmações do Comandante que declarava a preocupação em evitar abusos nas operações coercitivas e ainda expunha a crença em benefícios que derivariam da regulamentação da profissão de flanelinha. Afirmava que era ‘claro’ que existia a participação de algum flanelinha nos furtos na região:

“Ele acredita que muitos podem ter ligação direta ou indireta com o número elevado de furtos na Vila Santa Cecília, principalmente, na Praça Brasil”

 

 A matéria relatava que em duas operações da Polícia Militar, acontecidas nos dias 25 e 28 de março, 3 pessoas haviam sido encaminhadas à delegacia, uma por suspeito de furto, e que foram todas liberadas por não possuírem antecedentes criminais.

Segundo o divulgado nos dias 03 e 04 de abril no ‘Diário Virtual do Programa Dário de Paula’, no dia 02, em nova operação, 23 flanelinhas foram levados à delegacia. No dia 03, última operação considerada pelos veículos de comunicação que acessamos, 8 flanelinhas foram detidos e encaminhados. Nenhum possuía antecedentes criminais.

No dia 29 de maio, data precisada pelos sujeitos entrevistados, a guarda municipal iniciou um trabalho de coibição do trabalho dos flanelinhas, com presença em tempo integral em alguns pontos da Vila Santa Cecília, incluindo a Praça Brasil, um dos “cartões postais” da cidade, que foi escolhida para nossa pesquisa 4.

 

2. INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) versa:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

(...)

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

 

A atividade dos flanelinhas apenas coloca-se como ilícita ao vincular-se a alguma contravenção (Costanze, 2007), tal como a extorsão, loteamento do espaço público ou colaboração em furtos. A Constituição orienta: “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”

Uma rápida análise em arquivos de jornais eletrônicos nacionais ainda nos apresenta que não raro flanelinhas são autuados por “exercício ilegal da profissão”. Exercício “ilegal” de uma profissão não regulamentada.

A exclusão social pode ser minimamente caracterizada como a perda da cidadania, que é o conjunto de direitos e deveres que uma sociedade reserva aos seus membros.

Jodelet (2004) atribui várias possibilidades de modelação desse processo de exclusão, que é constituído nas relações interpessoais ou intergrupais e pode ocorrer material ou simbolicamente. Segundo esta, os instrumentos de operacionalização da exclusão são a Segregação, que é o distanciamento topológico do indivíduo; a Marginalização, ou manutenção do indivíduo à parte, no bando (Sequeira, 2006); e a Discriminação, que consiste no cerceamento de acesso a recursos, bens, status, etc..

A nomeação de “processo” se deve ao entendimento de que exclusão e inclusão aparecem como faces dialéticas de um mesmo fenômeno, como alude Souza (2004):

“A exclusão é um processo cujo sentido só pode ser encontrado na vida social, onde se constitui em torno de interesses que lutam para se impor como interesses dominantes, como normas de convivência, como reguladores das relações sociais, culturais, políticas e econômicas. (p.64)”

Os indivíduos são constituídos historicamente e a subjetividade é resultado de um entrecruzamento de determinações coletivas (Guattari, 1996). Segundo Jodelet (2004), indivíduos engajados e implicados emocionalmente em um grupo tendem a investir sua própria identidade neste, o que promove uma quase indiferenciação entre a auto-imagem e o grupo. A categorização social é a divisão social que é efetuada cognitivamente para organizar e simplificar nossas representações sobre as pessoas e grupos. A assimilação entre iguais e contraste de diferentes, tendência fundamental da percepção social, estimula a categorização do “nós”, seguido da diferenciação e exclusão daqueles que não pertencem à mesma categoria. Dois perigos desse processo podem ser levantados: A responsabilização viciosa do outro, contra a proteção do um, pode gerar o distanciamento e descompromisso com a solução do problema, rematado com a penalização do outro (Souza, 2004); e a tendência a selecionar e interpretar informações congruentemente com a categoria na qual colocamos algum indivíduo ou grupo pode gerar distorções e vieses a respeito dos mesmos (Jodelet, 2004).

Para Carone (2004), a isonomia política é um mecanismo tímido na busca da igualdade, que apenas se estabeleceria através da resolução das disparidades econômicas e sociais. A diferenciação proposta pela autora é entre a Igualdade Política, que é apenas formal e garante somente o uso efetivo da liberdade e singularidade; e a Igualdade Material, que é a igualdade real, mas que não pode ser alcançada pela inquestionabilidade da noção de propriedade privada dos meios de produção. Na batalha socialismo-capital, o resultado do impasse é a noção de justiça social, que na democracia corresponde à proposta de igualdade de condições, o que não existe.

O poder econômico influencia, ou, não raro, regula o poder político. Os agrupamentos dominantes do nosso contexto social são uma minoria demográfica que acumula a maior fatia da economia e mantém o controle dos veículos de informação, assim como da cena política formal. Segundo Guattari (1996), a norma dominante enquadra o diferente, que é marginalizado – controlado, vigiado, assistido, apassivado. Com o domínio das informações que podem circular, pode-se passar para além do controle dos meios de produção: Pode-se produzir subjetividades. O resultante é a manutenção e reprodução da estrutura social vigente, o modelo dominante. O aspecto inovador dessa ótica é que se entende que o poder não é uma dialética simplesmente unidirecional. O statu quo é reproduzido tanto a nível dos dominantes, quanto dos dominados.

Segundo Guareschi (2004), sem legitimação ideológica (Psicológica e Social), as relações de exclusão não conseguem perpetuar por longo tempo. Sua crítica é a respeito dos pressupostos do liberalismo e neo-liberalismo, como a Competitividade, que exige a exclusão, e a Culpabilização Psicológica, no qual as pessoas são responsabilizadas individualmente por sua situação econômica adversa e injusta.

Jodelet (2004) sublinha ainda os efeitos das atitudes discriminantes nos grupos excluídos, como a interiorização de imagens negativas, sentimentos de inferioridade e baixa auto-estima.  Esta dinâmica pode ser articulada com o que Guattari (1996) entende por fatores de inibição do que foge ao dominante, como a vergonha e a culpabilização, que se inserem como instrumentos de castração do singular. O dominado adentra ao vício de desgostar-se.

Citando um texto de Agnes Heller, Sawaia (2004) define culpa e vergonha como “sentimentos morais generalizados e ideologizados com a função de manter a ordem social excludente, de forma que a vergonha das pessoas e a exploração social consistem as duas faces de uma mesma questão” (p.102).

A direção proposta pela autora insere a afetividade no estudo da exclusão social, pretendendo quebrar a neutralidade da reflexão científica, sem perder o rigor metodológico. O questionamento sobre a felicidade ou sofrimento na exclusão humaniza a discussão e supera a concepção do pobre unicamente preocupado com sua sobrevivência.

3. APRESENTAÇÃO E ANALISE DOS DADOS OBJETIVOS

De acordo com Sawaia (2004): “Não basta definir as emoções que as pessoas sentem, é preciso conhecer o motivo que as originaram e as direcionaram, para conhecer a implicação do sujeito com a situação que as emociona” (p. 110).

Segundo os trabalhadores da Praça Brasil, a principal acusação sofrida era a de colaborarem em furtos e roubos ocorridos, o que era confirmado por outros personagens, assim como os jornais. Escolhemos para análise quantitativa: o ‘jornal A Voz Da Cidade’, publicação regional, o ‘diário virtual do Programa Dario de Paula’, um dos programas de rádio mais populares da cidade, e dados do ‘Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro’.

Na figura 01 são demonstrados os furtos de veículos no período de Janeiro a Julho dos anos 2007 e 2008.

Figura 01 – Furtos de veículos segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Em 04 de junho de 2008, o ‘A Voz da Cidade’ veicula a seguinte informação, proferida em reunião do comandante da Polícia Militar com o presidente da Associação dos Moradores da Vila Santa Cecília:

“O coronel, por sua vez, garante que em relação ao número de veículos roubados no ano passado no local houve uma redução de 62% já nos primeiros meses deste ano e que em todos os dias a Polícia Militar realiza operações visando coibir a ação de flanelinhas e das quadrilhas especializadas nesse tipo de delito na Vila”

 

Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública, no ano de 2007 foi registrada a média de 37,41 furtos de veículo por mês na cidade de Volta Redonda. No período de Janeiro a Julho de 2008, essa média foi de 36,71 furtos, ou seja, queda de aproximadamente 2%. Comparando com os ditos 62% de queda dos crimes restritos ao local, parece que o que aconteceu foi uma mudança de endereço dos furtos, e não realmente uma diminuição.

Na figura 02 estão representadas as ocorrências de furto de veículos relatadas pelo diário virtual do Programa Dario de Paula no período de Março a Julho de 2008 .

Figura 02 - Furtos de veículo segundo Diário Virtual do Programa Dário de Paula

Os números não coincidem inteiramente com as estatísticas oficiais, mas através de tabulação dos dados é possível aproximarmos de uma comparação entre os furtos de veículo na cidade e a parcela de ocorrências restritas à Vila Santa Cecília. Após as operações da polícia militar, observa-se declínio significativo, tal como nos dados oficiais, e os furtos na Vila Santa Cecília prosseguem diminuindo nos meses conseguintes. Já o número de furtos gerais em Volta Redonda inversamente aumenta.

Se as operações policiais ostensivas de março e abril foram revestidas da visibilidade e alcance amplo dos meios de comunicação social, a iniciativa do dia 29 de Maio teve exposição limitada aos poucos lugares na qual a Guarda Municipal se instalou. O possível efeito inibidor das operações espetaculares não fez parte da segunda incursão, o que parece refletir a partir de maio, quando os números rebaixados de abril voltam ao nível da média do ano. A presença da Guarda se faz notar nos espaços urbanos movimentados e valorizados do bairro, tais como a Praça Brasil.

A Praça Brasil foi uma das primeiras beneficiadas pelo monitoramento por câmeras de vídeo, serviço implantado em diversos pontos da cidade em 2001, e conta com um Posto Avançado da Guarda Municipal instalado em suas adjacências. Esse aparato neo-panótipo parece exercer uma forte influência pelo menos em relação aos furtos de veículos estacionados na praça. O levantamento dos registros de ocorrência noticiados nos dois veículos de comunicação supracitados constatou que a Vila Santa Cecília comportou 19,14% e 29,73% do total de furtos de veículos ocorridos na cidade no período de janeiro a julho de 2008. Destes, nenhum aconteceu nas imediações da Praça Brasil, ao contrario do divulgado.

A última consideração, talvez a mais importante, diz respeito às características do cerceamento da atuação dos flanelinhas pela Guarda Municipal. É nesse ponto que o mérito em relação ao controle de contravenções corre o risco de se confundir com meros interesses estéticos. Os flanelinhas da Praça Brasil eram proibidos sem exceção de apenas uma atividade: lavar carros. Podiam permanecer no local e, após o horário de funcionamento do parquímetro, oferecer serviços de vigia e receber dinheiro pelo trabalho. No entanto, tinham seus instrumentos apreendidos caso tentassem lavar veículos. O que expunha o trabalho em via pública, baldes, panos, tapetes, era proibido. O que se nomeou como ‘achaque’, permitido.

4. TRABALHO DE CAMPO E METODOLOGIA

Com interesse em compreender melhor a realidade vivida pelos flanelinhas de Volta Redonda, realizamos entrevistas de livre estruturação (Tavares, 2000).

Após o contato inicial, o período de entrevistas aconteceu no ínterim entre 02 de junho e 22 de julho, sem cronograma prévio. Estas foram realizadas durante o horário de trabalho dos sujeitos da pesquisa e se concentrou no território da Praça Brasil. 05 sujeitos participaram de entrevistas, 04 do sexo masculino e 01 do sexo feminino, com idades entre 20 e 50 anos. Os relatos foram gravados em arquivos de áudio.

Nossas intervenções consistiam em respostas compreensivas empáticas (Rogers, 1976) e pedidos de esclarecimento ou aprofundamento em assuntos emergidos que nos parecessem contributivos para nossa compreensão daquela realidade. Por acontecerem durante o horário de trabalho, as entrevistas eram intrometidas pelo cotidiano do espaço público. As entrevistas gravadas foram transcritas e submetidas à análise categorial (Bardin, 2000), numa primeira etapa. Utilizamos temas como unidades de registro.

A segunda etapa consistiu em recorte feito no interior das categorias formadas, a partir do qual falas descritivas foram eliminadas, restando apenas as enunciações que abordavam explicitas significações a respeito de algo. Nesta direção, aproximamo-nos da noção de componentes atitudinais, conforme Rodrigues (2003, p. 98):

“Podemos definir atitude social como sendo uma organização duradoura de crenças e cognições em geral, dotada de carga afetiva pró ou contra um objeto social definido, que predispõe a uma ação coerente com as cognições e afetos relativos a este objeto.”

 

Atemos-nos às falas com explicitações de elementos cognitivos e, em especial, afetivos, com vistas a caracterizar óticas subjetivas sobre os acontecimentos.

Os temas que tiveram representatividade mínima de 60% sobre o conjunto de falas dos entrevistados foram Trabalho, Autoridades, Honestidade e Sofrimento ético político, e são discutidos em análise.

5. ANÁLISE COM OS DADOS SUBJETIVOS

Embora alternativo ao mercado de trabalho oficial, o trabalho em espaço público pode ser realizado não como “biscate”, mas como profissão, incluindo preocupações éticas. A freguesia muitas vezes é conquistada, formando um vínculo informal entre prestador de serviços e a clientela. Muitos exercem a função de flanelinha como carreira, há vários anos ou décadas. A história pessoal chega até mesmo a confundir-se com a do cenário urbano.

Problematizando a idéia do ‘não-trabalho’, atribuído aos exerceres profissionais autônomos, e supondo ser a norma dominante intelectualizada, instruída, fichada ou formalmente contratada, entenderíamos o processo de desqualificação de um grupo oposto, de baixa escolaridade e sem carteira assinada. A naturalização das características instituídas do “emprego”, com horários e honorários determinados, parece impedir o reconhecimento do trabalho em via pública, nomeando de “vagabundos” pessoas que trabalham até 12 horas por dia.

O embate entre grupos sociais fica bem claro na desqualificação efetuada sobre as autoridades políticas. Contrastando a partir do referencial próprio, baixa renda e luta diária para custeio da subsistência, os flanelinhas encaixam o prefeito em categoria extrema oposta ao de trabalhador e consumidor, atribuindo-lhe o desconhecimento do valor real e encarecido dos gastos domiciliares. O guardas, mais próximos desses referenciais identitários, são considerados trabalhadores sem poder de escolha, submetidos a ordens superiores que não podem ser questionadas, sob pena de desemprego. A culpa ganha um ícone centralizador: o Príncipe.

O poder público, às vezes personificado na figura do prefeito, às vezes nomeado no genérico “eles”, corresponde a esse Príncipe, incompassível e arbitrário, que cobra deveres e nega direitos cidadãos. Os flanelinhas não se sentem representados, amparados ou empoderados; mas totalmente marginalizados, submetidos.

O crime é sedutor em um grupo marginalizado, que acaba por conviver em ambientes onde circulam valores e convites para a contravenção. O trabalho é a alternativa ao mundo ‘fácil’ e ‘rápido’ do delito, que seria o único caminho além dos subempregos possibilitados pela baixa escolarização. A inibição de sua atuação é percebida pelos flanelinhas como derivadas do descaso da sociedade e estado, empurrando-os para a exclusão final: prisão ou morte. Este é um processo que pode ser extremamente sutil, tal qual o que Jodelet (2004) apresenta como efeitos auto-realizadores do preconceito, que, interiorizados pelos alvos, geram comportamentos que reificam o fado, confirmando expectativas.

A baixa escolarização faz com que indivíduos tramitem entre a pena e o descarte, excluídos do mercado de trabalho oficial e lançados à uma vida degradante, não raro culpabilizados pela própria sorte. Essa lógica, lembrada por Guareschi (2004), extremamente conveniente à manutenção do statu quo, parte de um discurso naturalizante da educação formal como inerente ao ser humano.

Enquanto membro de uma instituição construída historicamente, o dispositivo escolar promove a modelação do corpo dócil. Investe a norma e adestra os seres para ordenar as multiplicidades humanas (Foucault, 1998). Esse processo disciplinar é parte fundamental da subjetivação que garante a crença na escolarização como um dever, e possibilita a permanência de um indivíduo em classes educacionais mórbidas e maçantes durante anos seguidos. O rompimento deste processo por intercorrências de vida torna dificultadas as relações com o sistema educacional, estagnando indivíduos solapados pelas exigências do mercado formal. Os entrevistados mais velhos não se vêem mais na escola, os mais jovens ainda “podem correr atrás”. Mas não correm. São narrados insucessos nas tentativas de retomar a formação. A escolarização é idealizada, mas distante, não apropriada. A fala é dominada por uma série de imagens bem recebidas, valorizadas, reconhecidas coletivamente pela referência dominante, mas que não fazem parte de suas subjetividades, seus desejos. Não há legitimação em dizer que não ‘gostem’ de estudar, e embasar uma ótica meritocrática liberal. Eles não tiveram contexto para fazer do estudo ‘gosto’ e ‘exigência’ integrantes de suas vidas.

Desde cedo, privados do suporte familiar, alguns dos entrevistados foram exigidos de autonomia para a sobrevivência nas ruas. Outros, em instituições ou no convívio familiar, romperam enquanto adolescentes. As novas configurações de vida foram acompanhadas da cisão com o sistema escolar e a exigência de independência financeira. Alguns se aventuraram em subempregos, concomitante ou anteriormente ao trabalho informal em espaço público. Outros, só fizeram isto a vida inteira. Ajustamento Criativo é um conceito Perlsiano que diz respeito a respostas que um sujeito operacionaliza para lidar da melhor forma possível com as demandas que lhe são oferecidas por sua experiência (Perls, Hefferline & Goodman, 1997).

O sofrimento presente na situação investigada está atrelada à desconsideração cidadã dos indivíduos, não nas características laborais, o que compromete a responsabilização da informalidade profissional como o único elemento excludente do processo. A manobra inclusiva através da alocação em empregos ‘fixos’, geralmente subempregos destinados para a população desqualificada profissionalmente, apenas transparece a face oculta do processo de exclusão. A integração das classes populares no mercado formal, sem no entanto expandir as possibilidades de ascensão econômica e estatutária, propõe apenas a manutenção da estrutura social vigente, revestida do discurso ideológico de valorização do trabalho formalizado, ainda que degradante.

Por fim, recordamos a denúncia da exclusão do “feio”, do que não se enquadra nos anseios estéticos dominantes. Exclusão do anti-pompa, anti-chique, anti-técnico ou anti-óbvio. Campanha anexada astuta e silenciosamente no alicerce dos discursos verossímeis, justificando a moldagem superficial dos sintomas de violências excludentes tão mais profundas e anteriores. Escondendo-os para fingirmos não existirem.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a sociedade estrutura-se de forma a facilitar o convívio e conforto de cidadãos, o controle do pacto social é um fundamento para a preservação de direitos individuais instituídos. Aos contraventores, rege-se, portanto, as políticas de coerção, penalização, re-educação e re-integração, que, embora altamente questionáveis , ainda são pilares necessários para a vida conjunta em nosso cenário atual.

Qualquer pessoa pode cometer delitos, ao que deverá responder aos ditos penais da legislação, caso a responsabilidade e culpa seja comprovada. Mas deve-se entender a extrema complexidade comportada nessa trama, sob o risco de condenar pessoas não pelo que fizeram; mas pelo que são (Sequeira, 2006).

E como, no crime, não pensar nas motivações, necessidades criadas, injustiças que direcionam à contravenção; ou, no menos doloso, o descaso conjuntural na construção de um sujeito que introjetasse a lei, norma que é externa ao indivíduo. Assim, como negligenciar a parcela de culpa da impunidade, contida mesmo nas ações sem foco que diluem a responsabilidade entre honestos e desonestos; ou, mesmo, cruelmente, honestos e somente honestos.

E, na honestidade, quais não são os inúmeros pontos a serem repensados em nossa ‘certeza’ característica, como em que momento o poder público se torna uma instância independente, ao invés de ouvir e representar a população nas suas verdadeiras vontades e necessidades; qual foi a participação do conjunto social no caminho em que pessoas foram sutilmente encaminhadas para os espaços e atividades que hoje temos vontade de esconder; e, principalmente, quê é que tanto nos incomoda em pessoas quererem ser (e serem) simplesmente diferente de nós.

Os flanelinhas incomodam, ou somos nós que nos sentimos incomodados por eles?

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Notas

1 Traducción: cuidadores o guardias (Nota del Editor)

2 Trabalho apresentado como exigência para a conclusão do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Estácio de Sá, no segundo semestre do ano de 2008.

3 Não utilizaremos “flanelinhas” (entre aspas) por entendermos ser uma nomeação há muito consolidada.

4 A pesquisa e o tratamento dos dados de campo foram realizados em conjunto com Lauriane Martins Santana, também graduanda em Psicologia à época.

5 Meio de comunicação escolhido para apresentação de dados por ter maior cobertura e detalhamento dos delitos, dentre os veículos analisados.

6 Discussão importante, mas que foge ao foco do nosso trabalho.


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