Cirurgia Cardíaca Pediátrica: O Papel do Psicólogo na Equipe de Saúde


Lenira Akcelrud Finkel
Vanessa Beatriz Passos Espíndola



Instituto Nacional de Cardiologia - Ministério da Saúde
Rio de Janeiro (RJ)

(Brasil)

 

Resumo

O trabalho aborda a importância da preparação psicológica da criança para cirurgia cardíaca, apresentando uma normatização de procedimentos no atendimento psicológico. Fundamentando-se na teoria psicanalítica, propõe modificações na abordagem clássica com a criança e a família para contemplar a especificidade da clientela. Descreve a trajetória de implantação de pré-operatório infantil, os passos seguidos pelo profissional de psicologia e as razões que justificam os procedimentos adotados. Aponta para as conseqüências, emocionais e cognitivas, das vivências da cirurgia e permanência em UTIP e para a necessidade de adequação da técnica à realidade institucional.

Apresenta proposta de desenvolver o possível dentro do espaço disponível, defendendo uma estratégia de atuação da psicologia hospitalar que opera mudanças institucionais, dinamiza o serviço e contribui para a qualidade do atendimento.

Palavras-chave: Cirurgia cardíaca, Psicologia infantil, Psicologia hospitalar, Cirurgia em crianças, Cardiopediatria

 

Abstract

The paper describes the importance of psychological preparation of the child for heart surgery, showing procedures standardization on psychological attendance. Based on the psychoanalytical theory, it suggests changes in the classical approach with the child and family to account for the specific nature of the subject. Relates the course of introduction of pediatric preoperative procedures and the steps followed by the psychologist, as well as the motives that justify the adopted procedures. Points out the consequences both emotional and cognitive of the experience of surgery and the stay at intensive care units and to make adequate techniques to the institutional environment.

The paper presents a proposal to develop what is possible within available environment, defending a strategy of hospital psychological action that raises institutional changes, upgrades service and contributes to the quality of care.

Keywords: Cardiac surgery, Child psychology, Children surgery, Cardiopediatrics

 

Introdução

A presença do psicólogo em hospitais, integrando equipes de saúde, é ainda recente. O paciente hospitalizado ali está para tratar de algo que não vai bem no seu corpo. É bem verdade que, em muitos casos, observam-se somatizações importantes nos quais se pode afirmar não ser exatamente o corpo biológico que porta o problema ou disfunção que, no entanto, se manifesta através dele. Está claro aí o lugar do psicólogo, chamado a tratar de um problema de origem psíquica que transborda para o corpo, exatamente porque a estrutura e o funcionamento psíquico estão comprometidos (Mello,1992).

Mas, no objeto de enfoque desse trabalho, não há dúvida de que se trata de algo tão concreto quanto uma questão anatômica que a cirurgia pretende corrigir, ou ao menos minorar as conseqüências hemodinâmicas decorrentes do defeito cardíaco.

No Serviço de Cardiologia da Criança e do Adolescente do Instituto Nacional de Cardiologia (RJ) atende-se a um grande volume de pacientes, quase todos cirúrgicos. Destes, a maior parte é constituída de casos de cardiopatia congênita, seguindo-se os casos de seqüelas de febre reumática em que se realizam cirurgias de plastias ou próteses de válvulas.

Os exames pré-operatórios são feitos ambulatorialmente e o paciente é internado na véspera da cirurgia agendada. Os casos de emergência, de bebês que vêm direto da maternidade, de crianças que se internam por se apresentarem descompensadas e são operadas nessa internação, fogem a essa rotina. Às vezes, a criança é hospitalizada com vistas à cirurgia no dia seguinte e, por diversas razões, a cirurgia é adiada: uma emergência ocupou o horário do centro cirúrgico que lhe estava destinado, a criança apresentou alguma lesão de pele, escabiose, febre ou tosse, uma das cirurgias do dia demorou muito e não foi possível realizar a segunda, falta de vaga no pós-operatório infantil ou até mesmo algum problema técnico de aparelhagem no centro cirúrgico, são algumas das situações que podem transferir para outro dia a cirurgia daquela criança. Quando isto acontece, ela permanece internada até a realização da cirurgia, ou pode receber alta e retornar na véspera do novo agendamento. Casos há também em que o impedimento à realização da cirurgia é o pânico no qual entra a criança: recusa-se, agita-se, chora muito, implora que não a operem. Outras vezes é a mãe que, agarrando-se ao filho, não autoriza que o levem.

Foram esses casos que, por um motivo ou outro, exigindo a permanência da criança no hospital, por um tempo antes da cirurgia, possibilitaram realizar um trabalho de preparação psicológica com a criança e sua mãe, algumas vezes incluindo o pai na hora da visita. Puderam-se constatar, então, benefícios relevantes decorrentes desse trabalho. O testemunho desses pacientes fundamentou um trabalho de equipe multidisciplinar em caráter de rotina do Serviço, não mais nas exceções que fugiam à rotina, mas dirigido a todos os pacientes com cirurgia agendada.

As crianças com cardiopatias congênitas e reumáticas com acometimento de válvulas podem hoje contar com modernos recursos tecnológicos. Se a evolução da ciência permite oferecer sofisticadas técnicas para a correção dos defeitos anatômicos congênitos ou adquiridos, o profissional de psicologia que atende a essa população não pode deixar de buscar recursos técnicos que lhe permitam oferecer a ajuda necessária para enfrentar esse empreendimento tão assustador, que leva muitos pacientes a fugirem da cirurgia, alguns retornando mais tarde com quadros agravados, por vezes, já inoperáveis.

O medo da morte, da dor, da separação, dos aparelhos, de todo um desconhecido aparato médico-hospitalar aterroriza e provoca intenso sofrimento. Os procedimentos e os instrumentos, se milagrosos de um lado, podem ser torturantes de outro. Para tratar e curar a criança há que separá-la dos pais e mantê-la num centro cirúrgico e UTI, onde ela permanecerá como que propriedade da equipe médica que regulará os horários e duração das visitas dos pais e até mesmo as informações sobre sua evolução. Regras e restrições existem para garantir o melhor funcionamento, para preservar o paciente de contaminações, mas são, geralmente, vividas como mais uma fonte de sofrimento.

A compreensão dos porquês de tantos aparelhos, procedimentos, restrições é que pode levar o paciente a não se sentir agredido ou torturado. É preciso lhe dizer que tudo isso, mesmo que assustador ou doloroso, é para o tratamento de que ele precisa. O desafio que se coloca para o psicólogo é desenvolver recursos para transpor a barreira da comunicação distorcida, para que a criança não se veja agredida. Paciente A., 3 anos, cirurgia bem-sucedida na sexta-feira e já de volta à enfermaria na segunda-feira, diz: “Tinha muito monstro lá dentro”; paciente J., 8 anos, não quer operar “porque depois vai para aquele lugar que está escrito ali que é pior”. Artérias e veias fora de lugar ..., infância fora de lugar, as letras que formam a sigla do Pós-Operatório Infantil – POI também estariam fora de lugar, pois ao que tudo indica esse seria mesmo um lugar PIOr.


Brincando de Médico

Os pacientes com cirurgia marcada são agendados para uma reunião com a equipe do Serviço. Essa marcação é feita pela enfermagem do ambulatório de pré-operatório quando de alguma consulta ou exame que traz aquele paciente ao hospital. A freqüência das reuniões é quinzenal e a equipe é composta por psicóloga, assistente social, enfermeira, nutricionista, fisioterapeuta e médico. São convidados, além da criança que vai operar e os pais, todos os membros da família que desejarem participar. O convite é impresso e nele são formuladas, em linguagem acessível, as justificativas daquela reunião.

A redação do convite visa a mostrar aos pais que se entende e se valoriza suas aflições. Ao entregar o impresso, onde está formalizado, institucionalizado o espaço destinado a acolher suas dúvidas e angústias, já se inicia o trabalho de preparação para a cirurgia da criança. Conquistar a confiança dos pais será o primeiro passo.

A reunião é realizada no auditório do Serviço de Cardiopediatria, com capacidade aproximada de 30 pessoas. A assistente social enfatiza a importância do encontro, incentivando a participação ativa, a aproveitar a oportunidade para tirar dúvidas e veicula uma série de informações sobre a rotina da enfermaria, os pertences e os documentos que devem e os que não devem ser trazidos. A enfermeira informa sobre os cuidados de higiene necessários, principalmente em relação à infecção hospitalar, rotinas da enfermagem no pré e pós-operatório, orientando inclusive sobre a retirada dos pontos. Fisioterapeuta e nutricionista, igualmente, informam, esclarecem e justificam as rotinas e procedimentos realizados por cada especialidade. O médico é sempre o último a falar, dirigindo-se aos pais. É para ele que é endereçada a maior parte das perguntas que versam principalmente sobre o prognóstico, e muitas vezes, sobre a própria cardiopatia.

A atuação da psicologia se dá em paralelo a todas essas exposições. Dispomos de um auditório preparado nesse sentido. Há um espaço atrás das cadeiras onde se encontram duas mesas com cadeiras em volta e um armário onde se guarda o material lúdico destinado a esse trabalho. Assim que começa a reunião, a psicóloga vai retirando os brinquedos do armário e colocando-os sobre a mesa. O material consiste em boneco cirúrgico, estetoscópios, tesouras, alicates de brinquedo, seringas e equipos de soro (de verdade, sem agulhas), recipientes de soro vazios, um carrinho de fricção que abre o capô, máscaras, luvas, gorros, capote. Papel, lápis, canetas, outros bonecos e carrinhos complementam o material que vai ser oferecido às crianças presentes à reunião. Ao perceberem a movimentação com brinquedos, as crianças se atraem e são convidadas a brincar. A maioria aceita, alguns intimidados não aceitam de início, mas vendo os outros, acabam aderindo. Há os que não se desgrudam dos pais, mas mesmo assim eles vêem os outros brincando e isto já é importante. É freqüente a participação de irmãos nessa atividade, sendo isto considerado muito bom. São convidadas também crianças já operadas, com boa evolução, em fase de recuperação na enfermaria para participar. Essa participação é benéfica para a criança operada, que tem a oportunidade de melhor elaborar a sua vivência, ao mesmo tempo que para as outras serve como exemplo e estímulo. Crianças que estejam internadas para cirurgia e por algum motivo não tenham participado da reunião prévia à sua internação também são convidadas.

O fato de a atividade das crianças se desenvolver no mesmo ambiente onde se encontram os pais favorece a sua participação, pois muitos não ousariam separar-se dos pais num ambiente hospitalar, com pessoas estranhas, num momento em que se fala de cirurgia. Ao mesmo tempo, sabe-se que, nessas situações, as crianças desconfiam do que lhes dizem os adultos. Elas costumam fingir brincar distraídas, enquanto escutam atentamente o que conversam os adultos sobre os planos que a incluem. Essa configuração espacial, onde elas podem estar presentes na conversa dos pais com a equipe do hospital, permite lhes mostrar que se faz “jogo limpo”, que elas não serão enganadas. Ao mesmo tempo, os pais que temem abordar o tema da operação com o filho, ao ver a criança brincando com o temido tema, podem se tranqüilizar. Quebra-se o tabu do silêncio que envolvia a questão.

Brincar falando ou falar brincando, talvez seja a melhor forma de se falar da cirurgia para as crianças junto a seus pais. É a brincadeira a situação de maior propriedade da criança (Winnicott, 1975). Brincar de operar os bonecos durante a conversa com os pais, possibilita desmitificar o contato da criança com a cirurgia. A reunião é formatada para proporcionar esse tipo de vivência para a criança e sua família. Abrir o diálogo sobre o assunto é a primeira decorrência do fato de se atender, conjuntamente, criança e família. “Até o dia da reunião M. não sabia que ia operar o coração, mas como vocês falaram aqui e ela chegou em casa falando também, não pude esconder mais”. Às vezes fica um certo tumulto, uma certa sobreposição de falas, mas isto também cria um clima descontraído, familiar, que ajuda a tirar da cirurgia um aspecto de sacralidade que só serve para aumentar os temores.

A atividade lúdica é dirigida. Começa-se com a apresentação de um carrinho que se afirma estar andando mal porque está cansado (sintoma freqüente dessa clientela), porque tem um problema no motor e então se abre o capô para consertar o motor. Esse conserto é feito com seringas e os mesmos instrumentos que serão usados posteriormente na cirurgia. Após o conserto, o carrinho fica muito bem. Convida-se em seguida a criança a brincar de operar o boneco, que assim como o carro tem um problema no seu coração, fazendo uma analogia do coração com um motorzinho. E aí se usa o termo consertar sempre associado a operar. Consertar é uma expressão que a criança conhece muito bem e vai então facilitar a compreensão da necessidade do procedimento (Finkel, 2003). A metáfora do carrinho ajuda a justificar a cicatriz - já que não temos capô, o jeito é operar.

Nesse momento, as crianças se vestem de médicos e enfermeiras, usando o material já descrito. Mostra-se que é preciso usar touca para não caírem piolhos na operação, e máscara para não caírem melecas. Essa fala provoca risos e tem como objetivo desmitificar a figura do cirurgião. Vai-se, então, apresentando os passos que acompanham a cirurgia, desde a punção venosa até a colocação dos drenos e monitorização no boneco já operado. A dramatização prossegue até a retirada do tubo traqueal, drenos, soros e eletrodos. O boneco tem alta do POI, vai para a enfermaria, recebe alta hospitalar e veste roupa de ir para casa.

Essa dramatização costuma ser repetida algumas vezes em cada reunião, para dar oportunidade a várias crianças de participar como membro da equipe cirúrgica. Uma criança pode ficar no lugar do boneco e fingir dormir quando recebe anestesia. Psicóloga e estagiárias podem ser operadas também. Ver a “doutora” sendo operada leva a criança a se sentir mais fortalecida para também se submeter à cirurgia.

A brincadeira ocorrendo enquanto os profissionais da equipe dirigem-se aos pais é também um treinamento para a apresentação que é feita após o término dessas falas. Assim, quando todos já tenham falado e as crianças já tenham ensaiado, a psicóloga dirige-se aos familiares, ressaltando a importância de se falar e brincar com as crianças sobre a operação; e são as próprias crianças que dramatizam, agora na frente de todos (devidamente paramentados), demonstrando que sabem os passos da cirurgia a que serão submetidas. Cada criança ao sair recebe um kit com máscara, gorro e seringa para brincar de operar em casa.

Há casos em que se agendam atendimentos individuais em ambulatório, com vistas à preparação psicológica para a cirurgia, podendo ser um atendimento único ou várias consultas ao longo de meses. Mas são exceções; o que a instituição oferece como rotina é essa reunião com a equipe multidisciplinar.


Por que a criança precisa saber

Estudos recentes constatam preocupante relação entre sobreviventes de UTIP e déficit cognitivo (Hopkins, 2007). A autora afirma desconhecer os fatores responsáveis e aponta a necessidade de avaliações para quadros específicos, tais como a doença cardíaca. A experiência clínica dos autores deste trabalho corrobora esses estudos, mostrando uma incidência considerável de atraso no desenvolvimento emocional e cognitivo e a conseqüente defasagem escolar nas crianças cardiopatas.

Com referência a tais aspectos, observa-se que a criança submetida a procedimentos invasivos, permanecendo em UTIP, é percebida como um “objeto” de tratamento médico. É a CIV (comunicação interventricular) do leito X para a equipe, e a criança doente para a família. A história da criança não é contada através das ocorrências comuns da infância, mas pelas internações e intervenções médicas. E como se supõe que a criança não vá entender, podendo se assustar inutilmente, ela não é avisada. Como esperar que um indivíduo tratado como um objeto defeituoso a quem se atribui incapacidade de compreensão desenvolva seu potencial intelectivo? Como desenvolver a capacidade cognitiva se é melhor não saber?

“O investimento feito pela medicina seria mais bem aproveitado, uma vez que muitos desses pacientes acabam por engrossar as fileiras de pessoas incapazes, mesmo em casos de boa resolução do problema cardíaco” (Finkel, 2000a). “A carga social de uma população crescente de sobreviventes pediátricos de doenças agudas com déficit cognitivo pode ser enorme” (Hopkins, 2007).

A suposição da incapacidade de compreender e suportar a perspectiva da cirurgia, o lugar de “objeto” de intervenções, destitui o indivíduo (mesmo criança) do status de sujeito. Acredita-se ser este um fator importante na trajetória das deficiências cognitivas e funcionais dessas crianças (Mannoni,1977).

Quando a equipe de saúde, desenvolvendo estratégias de comunicação, dirige-se à criança, não só consegue melhor prepará-la para o enfrentamento daquela cirurgia, como mostra aos pais que sua criança pode saber. Nos casos de malformações congênitas, o sentimento de culpa dos pais, por ter gerado o defeito, costuma impedi-los de deixar a criança saber o que se passa. Os resultados desse trabalho podem estender-se, interferindo na relação criança/doença/família.

Quando uma menina de sete anos chegou com a mãe e a boneca, perguntou-se se ela vinha internar-se para cirurgia. A mãe, piscando, indica para não se mencionar essa palavra e fala qualquer coisa sobre curativo. Percebeu-se que a criança veio enganada, que iria somente fazer algum curativo e ali na sala de espera não cabia nenhum tipo de intervenção. Mas a criança também percebeu que havia algo escondido que a mãe não queria que ela soubesse e quando a mãe vai almoçar no refeitório, a menina diz: “A mamãe foi almoçar, agora nós podemos conversar”. Foi uma ótima conversa, ela queria saber e foi informada. Quando a mãe voltou do almoço, conversou-se com ela também. Estava enganando a filha porque não sabia se devia falar, nem como fazê-lo, não havia recebido nenhuma orientação. A cirurgia não pôde realizar-se no dia seguinte e a menina ficou uma semana internada, tempo que foi aproveitado com a criança e sua mãe para a preparação. No pós-operatório, a mãe diz que foi mesmo uma grande sorte o adiamento da cirurgia, pois não imaginava como conseguiriam passar por tudo aquilo se não tivessem tido a preparação.

Quando a enfermeira do pós-operatório diz que pela reação da criança, ela já sabe quem passou pela psicologia, evidencia-se o benefício para o paciente e impõe-se ao psicólogo o desafio de estender esse atendimento ao maior número possível de pacientes.

. O desconhecimento incrementa a insegurança. Vendo a criança chegar intubada do centro cirúrgico, a mãe pode interpretar isso como sinal de extrema gravidade do quadro e se descontrola. A criança, sentindo-se agredida e perdendo a confiança nos profissionais e na mãe que a acompanha, deprime. É comum, no intuito de poupar a criança, negar-lhe a informação sobre a cirurgia a que será submetida. E também porque os pais sentem que não suportariam a ansiedade que o filho iria manifestar (Finkel, 2000).

“Além disso, a hospitalização e a cirurgia que trazem a esperança de cura trazem também a possibilidade de concretização da morte que ameaça desde o nascimento. Muitas vezes, ao ver a criança submetida a procedimentos invasivos, dolorosos, há uma agudização da culpa, tornando a equipe de saúde o alvo da projeção. Muitas queixas improcedentes de negligência e maus tratos decorrem desses movimentos inconscientes” (Finkel, 2000a). Tais constatações indicam de forma inequívoca a pertinência de uma preparação das crianças e suas famílias, anterior à internação para cirurgia.

Se a criança consegue compreender que todos os procedimentos, mesmo que dolorosos, são necessários, não se sente violentada, mesmo que chore no momento. A atividade lúdica é apenas uma linguagem para dizer que se vai tratar e não “mal-tratar”. A criança que tem a oportunidade de receber explicações e desfazer fantasias aterrorizantes, "autoriza" os procedimentos. Colabora mais, facilitando o trabalho dos profissionais envolvidos, sente-se valente e orgulhosa.

A reação da criança que recebeu atendimento psicológico de pré-operatório contrasta com aquela que não recebeu. Esse trabalho constitui parcela fundamental da humanização do Serviço, oferecendo acolhimento para o paciente e sua família, contribuindo para evitar vivências traumáticas da internação e da cirurgia (Finkel, 2000).


Justificativa da técnica

Oferecer atendimentos individuais ou em grupos onde se permitisse a livre expressão de fantasias, onde se esperasse pelas perguntas para, a partir dos dados oferecidos pelos pacientes, trabalhar o material consciente e inconsciente, responder ao que fora perguntado, para permitir um melhor enfrentamento da cirurgia, seria uma proposta utópica dentro da realidade da instituição e da clientela, uma vez que nesse modelo de atendimento, são necessárias várias sessões.

Uma proposta de preparação psicológica para a cirurgia cardíaca de crianças em hospital público com grande volume de pacientes terá que considerar ao lado dos aspectos emocionais que essa situação deflagra na criança e sua família, aspectos sociais e institucionais. As famílias não têm disponibilidade para muitas vindas ao hospital que, por sua vez, também não dispõe de espaço nem de profissionais para um trabalho que demandasse um número grande de atendimentos.

Na clínica psicológica infantil, a criança brinca, e o psicólogo vai ler nessa atividade o que lhe diz seu pequeno paciente e, geralmente, lhe responde na linguagem verbal dos adultos, o que entendeu e o que acha (Aberastury,1978). Na tarefa de preparação para cirurgia cardíaca pediátrica em situação na qual se dispõe de um único encontro com cada grupo, não se pode utilizar a técnica clássica dos consultórios. Mas se aqui se tem algo a dizer, isto será então dito na língua do brincar. A teoria é a mesma, muda a técnica. Cria-se a técnica que responde à necessidade de minorar sofrimentos, humanizar o atendimento e prevenir vivências traumáticas.

O objetivo principal do trabalho da psicologia no pré-operatório é mostrar à criança que os procedimentos invasivos a que será submetida, mesmo que assustadores ou dolorosos, são necessários para tratar o mal que lhe acomete. Porque ela pode imaginar-se punida. O que deixa marcas (no psiquismo) e causa traumas não é a cicatriz nem a dor física, é sentir-se impotente para defender-se de maus tratos (Finkel, 2003).

Ao explicar os procedimentos passo a passo, através do material lúdico que inclui carrinhos e bonecos, está se justificando o que lhes vai suceder. O brincar é apenas a linguagem que se usa para lhes dizer que a cirurgia cardíaca é assim, e que é preciso submeter-se a ela para poder ficar bom. Dirigindo-se à criança dessa maneira, confere-se-lhe o status de sujeito e não de um corpo a ser manipulado e torturado. É porque ela percebe que existe todo um investimento para justificar cada procedimento, porque ocupa um lugar de sujeito que pode se sentir tratada, mesmo que chore.

A dramatização que inclui a retirada dos tubos tem o objetivo de ajudar a criança a criar uma imagem mental que venha em seu socorro quando estiver no pós-operatório. Nesse momento, que é o mais difícil, ela poderá “ver-se “ sem aquilo tudo, boa, indo para casa. A perspectiva de um final feliz é muito importante para suportar momentos particularmente difíceis. Não é à toa que os contos infantis têm sempre um final feliz (Bettelheim, 1980).


Conclusão

A experiência descrita conduz a constatações em duas vertentes, quais sejam: as estratégias de abordagem técnica de uma clientela bastante específica e a inserção do psicólogo na instituição hospitalar.

Há ainda escassez de literatura específica sobre o tema. A vasta bibliografia sobre a psicologia infantil não contempla a especificidade dessa clientela. Mas a riqueza da teoria psicanalítica e as contribuições dos autores que se dedicaram à psicanálise da criança forneceram os subsídios para desenvolver as técnicas e estratégias necessárias a esses propósitos. Era preciso promover adaptações, adequar-se à realidade social, psicológica e institucional. A idéia de que não se pode aplicar a psicanálise na instituição pública é subsidiária da idéia de desvalorização das classes populares e atrela o psicólogo a procedimentos dogmáticos, engessando-o numa forma que o paralisa.

No uso da técnica lúdica como recurso para a investigação dos processos e conteúdos inconscientes da criança, não se deve dirigir ou induzir a brincadeira. Mas o que se pretende aqui evidenciar é que esse brincar é antes de tudo linguagem. E que o profissional de psicologia pode usar o recurso desta linguagem para criar o texto que abra as portas da comunicação de conteúdos tão difíceis de veicular, pois o calar do adulto deixa a criança só com seus medos. Por acreditar que dirigir atividade lúdica não consiste em heresia à técnica convencional dos consultórios, pôde-se desenvolver este trabalho, que é profilaxia em saúde mental. Direcionar a fala à criança introduz um novo olhar que lhe confere o status de sujeito, influenciando as relações paciente-família-equipe.

O trabalho na saúde pública propõe desafios ao profissional de saúde. Ao psicólogo cabe atender à demanda da instituição que, geralmente, consiste em aplacar a ansiedade e a angústia dos pacientes, evitando estados de agitação e atuação que afetem a organização necessária ao bom atendimento médico, e conseguir do paciente melhor adesão ao tratamento. Os psicólogos geralmente criticam a demanda que lhes é feita, preferindo voltarem-se para as demandas dos pacientes, queixando-se da falta de espaço institucional para o desenvolvimento do que consideram a função especifica da psicologia.

Esse trabalho pretende mostrar a possível conciliação do que quer a instituição hospital e do que julga o psicólogo ser o trabalho pertinente.

É queixa freqüente a impossibilidade de realizar o trabalho que se julga pertinente por falta de condições institucionais. A reunião de pré-operatório infantil do INC é uma proposta de desenvolver o possível dentro do espaço disponível. Acredita-se que essa é a melhor estratégia de atuação da psicologia hospitalar, pois ao ocupar um espaço mesmo que pequeno diante do que seria recomendável para o melhor atendimento do paciente, além de oferecer a ajuda possível, opera mudanças institucionais, mobiliza outras categorias profissionais, dinamiza o serviço e contribui para a qualidade do atendimento.



Referências


Aberastury, A., 1978, Teoria y Tecnica del Psicoanalisis de Niños, Buenos Aires, Argentina, Ed. Paidós.

Bettelheim, B., 1980, A Psicanálise dos Contos de Fadas, Rio de Janeiro, Brasil, Ed. Paz e Terra

Finkel, L., 2000, “Brincando de Médico”, Jornal do Laranjeiras,2, 3.

Finkel, L., 2000a, “A Ausculta e a Escuta: reflexões sobre a psicodinâmica da criança cardiopata”, Revista da SOCERJ, 13, 3.

Finkel, L., 2003, “Brincar Ensina a Viver: a função da atividade lúdica na criança submetida a procedimentos invasivos”, Editorial Laranjeiras,1,3.

Hopkins, RO., 2007, “A doença aguda e o tratamento em unidade de terapia intensiva contribuem para a morbidade cognitiva e funcional em pacientes pediátricos?” Jornal de Pediatria. 83, 6.

Mannoni, M., 1977, A Criança Atrasada e a Mãe, Lisboa, Ed. Moraes

Mello, FJ., 1992, Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artmed.

Winnicott, D.W., 1975, O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, Imago.