A recusa histérica à satisfação do desejo


Regina Barbosa Fernandes Simões

Formações Clínicas do Campo Lacaniano / RJ
(Brasil)


Resumo

A psicanálise nos aponta a importância entre a articulação da teoria com os casos clínicos, testemunhas ricas em ensinamentos sobre as diversas formas de sofrimento psíquico, além de promover um intercâmbio de experiências entre estudiosos do assunto.

O estudo deste caso clínico aborda criticamente a questão do desejo, que para a histérica está além de suas demandas, pois nada pode lhe ser dado com a finalidade de aplacar sua constante e insaciável rede de queixas. Trazendo consigo como características o ideal de perfeição, o discurso idealista, a marca da insuficiência, a histérica nos mostra que frente à sexualidade não há saber, e que ela vive inevitavelmente num estado latente de insatisfação que não se restringe unicamente ao registro sexual, mas que se estende para totalidade da vida. Quando mais insatisfeita ela é, mais protegida das ameaça de um gozo que para ela pode ser um risco de desintegração e loucura.

Palavras-chave: desejo, histeria, insatisfação, sexualidade.


Summary


Psychoanalysis demonstrates the importance of the connection between theory and clinical cases, both rich in teachings on the various forms of psychic suffering, even promoting an interchange of experiences between researchers of the subject. The study of this clinical case critically approaches the question of the desire, which for the hysteric is beyond its own demands, therefore nothing can be given to the hysteric with the purpose of stopping constant and unbearable amount of complaints. Bringing along with it, characteristics to the ideal of perfection, the idealistic speech, the mark of insufficiency as the hysterical shows that there is no knowledge to deal with sexuality, and inevitably lives in a disguised state of non-satisfaction that is not restricted solely to the sexual life, but it is extended for the entire life. The more unsatisfied a hysterical is, the more protected from the threat of joy, which can be a risk of disintegration and madness.

Keywords: desire, hysteria, sexuality.

 

Resumen

La psicoanalice nos muestra la importancia entre la articulación de la teoría com los casos clínicos, testimonios ricos en enseñamientos sobre diversos formas de sufrimiento psíquico, además de promover un intercambio de experiencias entre estudiosos del asunto.

El estudio de este caso clínico a borda críticamente la cuestión del deseo, que para la histeria esta mas allá de sus demandas, pues nada puede ser dado como finalidad de aplacar su constante y insaciable red de quejas. Trayendo consigo sus características el ideal de perfección, el discurso idealista, la marca de la insuficiencia la histeria nos muestra que enfrente de la sexualidad no hay conocimiento y que ella vive inevitablemente en su estado latente de insatisfacción que no se restringe únicamente al registro sexual, mas que se extiende para la totalidad de la vida. Cuanto más insatisfecha ella es mas protegida de las amenazas de una satisfacción que para ella puede ser un riesgo de desintegración y locura.

Palabras: clave: deseo, histeria, sexualidad.

 


Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente. A cada dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução é possível. (S. Freud)

Este é um trabalho que venho elaborando já há algum tempo e que remete ao pensamento freudiano na elaboração da teoria da histeria que marcou o final do século XIX e início do século XX. Nasceu de um lugar de reflexão, da vontade de apresentar a arquitetura histérica, tema tão especial e enigmático, através do testemunho real de uma paciente, uma mulher de vinte e oito anos, solteira, arquiteta, independente financeiramente, que chegou em meu consultório com a queixa de principal de “sintomas de uma anorexia nervosa”, e que ainda se encontra em análise. É um caso clínico que nos leva a pensar sobre as questões da feminilidade e do gozo, que nos aponta, portanto para a subversão desejante da histeria e as manifestações atuais dos seus sintomas. Tomei a liberdade de pedir-lhe autorização para escrever apoiada em suas falas nas sessões de análise, por isso dedico a ela este texto e a todas as mulheres histéricas.

Sabemos que o caso de Ana O.1 traz para o cenário europeu do século XIX o advento de um novo saber, de natureza revolucionária, marco decisivo na construção da Psicanálise, que vai produzir um desmantelamento em relação às idéias que circulavam na época sobre a questão da sexualidade humana e das pacientes nervosas*. Inaugura assim o momento de criação teórica, de uma explicação para a histeria no campo da psicanálise como uma doença psíquica bem definida e que exigia uma etiologia específica, livrando-a das noções colocadas pelo pensamento médico vigente. No entanto, as mulheres do século XXI, jovens, ricas, inteligentes e sociáveis, ainda sofrem do mesmo desejo insatisfeito de que sofriam as histéricas de outrora, apesar de seu sofrimento se oferecer sob outras faces, novas formas, às vezes com colorações mais suaves, às vezes com cores berrantes. A clínica da histeria moderna também se apresenta através de sintomas somáticos, sem nenhuma causa orgânica, transitórios e observáveis, como por exemplo, as enxaquecas, as dores localizadas, a anorexia nervosa. Um sofrimento, portanto com características diferentes, mas como no século XIX, a explicação que pretende dar conta dessa angústia ainda é a mesma.

A preocupação com o corpo, em esconder o furo, a falha frente ao ideal de perfeição, faz com que as histéricas de hoje se apóiem em modernas ortopedias corporais, possíveis substitutos das paralisias, contraturas e cegueiras, sintomas que marcaram o século passado. Enquanto continuam à procura desse ideal de perfeição, tanto corporal quanto intelectual e emotivo - sua marca patente é a insatisfação, pois a histérica não corre atrás de seu desejo, mas visa um ideal, e por isso está sempre se queixando, tecendo justificativas para continuar naquele lugar de manter o outro idealizado - seu gozo continua como sempre em busca de reconhecimento, e na sua procura excessiva e contraditória, na sua tristeza mal compreendida, ela é criticada por uns e medicada por outros.

A partir de 1900, Freud substitui a idéia de que a histeria tinha em sua origem uma representação inconsciente, pela angústia provocada por uma fantasia inconsciente. A partir desse momento a histeria estava relacionada à angústia de castração, quando se coloca em jogo a possibilidade de um dano narcísico bastante significativo. Desta forma surge a possibilidade para o sujeito de se encontrar frente à angústia, fator decisivo para a estruturação da neurose. Isso fala da divisão do sujeito, a histeria mostra que o sujeito não é uma unidade, ele é cindido, é divido, e a sexualidade fala desse desencontro, dessa falha do sujeito que a histérica não quer saber por causa de seu sonho de idealização. A histérica precisa ocultar sua falha, para isso ressalta todo o resto, constituindo assim um jogo de ocultamento/superexposição. É nessa superexposição que ela não deixa lugar para que ocorra um encontro com a tão temida e angustiante falta e essa estratégia nos diz de um terror ao desamparo, forma máxima do nada. Faz-se necessária, por uma questão de sobrevivência psíquica, a crença de que alguém pode ter o falo, completude, forma máxima do tudo: essa é a busca da histérica, o tudo por terror ao nada.

E o que nos diz o desejo na histeria? Comunicar que o desejo continua insatisfeito é a melhor forma de provar que esse desejo existe. Lucien Israël nos aponta que “dar-se conta de que um desejo existe talvez implique gozá-lo, e satisfazer esse desejo, talvez implique perdê-lo – ao menos por um instante – e perder-se ao mesmo tempo".2 O gozo seria então, a manutenção da tensão, a permanência do desejo insatisfeito, o que de certa forma, se opõe ao prazer. Seguindo este raciocínio, podemos perceber a estratégia da histérica que, em geral, não quer aquele que a quer, mas sim alguém inacessível, mantendo assim seu desejo sempre insatisfeito. Essa é a relação da histérica com o amor e com o desejo. Assim se pontua na insatisfação: sempre há algo melhor para encontrar.

Freud foi apontando aos poucos as diferenças na constituição da mulher. Podemos destacar em sua doutrina “cinco datas que são marcos importantes para o estudo da histeria e que sucessivamente apontam para a importância da sexualidade infantil traumática, para a bissexualidade fantasmática e para as identificações do complexo de Édipo na sintomatologia da histeria3. Em 1931, "Sobre a Sexualidade Feminina", marca a partir do como, quando e por que a menina se desliga da mãe, diz da construção de sua sexualidade. Assim os fenômenos da vida sexual da mulher, podem ser explicados com referência à fase pré-edipiana. Paul Assoun4 reitera que, “se de fato, o pai produz a lei no texto edipiano, a mãe então seria a chave dessa linguagem pré-edipiana. Essa ligação irredutível, de certo modo, constitui uma lei no inconsciente da mulher”. Na verdade o que Freud nos aponta nessa arquitetura da sexualidade feminina é esse ponto estranho, essa relação intensa com a mãe, esse apego de onde a menina parte, e do qual se desliga tão tarde, se é que se chega a se desligar definitivamente um dia. Assim, a menina entra no complexo de Édipo ao constatar a castração materna. Em 1923, "A organização genital infantil" (1923), traz a idéia de que é com a vivência dessa decepção que a filha faz a troca do objeto de desejo. A frustração com a mãe castrada que não lhe deu um pênis/ falo faz com que eleja seu pai como novo objeto sexual. No entanto, o pai também vai ser insuficiente, ele é sempre um impotente, pois não lhe deu o que ela esperava: reparar a sua falta. E a partir daí, ela vai se dedicar a reparar essa falta com uma demanda infindável, apontando que nunca é o suficiente. Vemos, portanto, que a histérica ignora o que é o sexo feminino, e na tentativa de descobri-lo, passa pela interdição do pai o portador do pênis/falo. Ela se instala então no desejo do pai com a finalidade de saber, desse lugar, o que a mulher tem de desejável, assim como para procurar sentir a mesma sensação experimentada pelo pai por possuir o pênis/falo. Desta forma ela acredita conseguir talvez, simbolizar o órgão sexual feminino. Lacan nos fala da tentativa de Dora em simbolizar o órgão feminino quando se interroga sobre o que é uma mulher: “sua identificação com o homem, portador do pênis, lhe é nessa ocasião um meio de se aproximar dessa definição que lhe escapa. O pênis lhe serve literalmente de instrumento imaginário para aprender o que ela não consegue simbolizar”5.

Mas como se identificar com algo que não existe, com algo que não se tem, com a falta, com o vazio? Eis então que a histérica fica na obstinação de querer reparar a própria falta e a do outro, ela se engaja no objetivo de tornar o outro perfeito e ela também, e aí ela encontra seu limite. A histérica tem uma demanda fálica, um desejo de reconhecimento, por isso ela sempre está numa relação amorosa sem estar, como se ela deixasse uma “saída”. Quanto mais difícil o parceiro mais ela se assegura de que aquele parceiro é o ideal.

A psicanálise nos aponta a importância entre a articulação da teoria com os casos clínicos. Estes são testemunhas, geralmente ricas, em ensinamentos, são contribuições que trazem através da prática na clínica psicanalítica, um material excepcional para reflexão sobre as diversas formas do sofrimento psíquico, além de promover um intercâmbio de experiências entre os estudiosos do assunto. A paciente deste caso clínico estudado por nós denota sua recusa histérica à satisfação do desejo. Apresenta um estado latente de insatisfação, um sonho de idealização na escolha de seus parceiros, um sofrimento circunscrito no registro sexual, ao qual ela se agarra para se proteger da ameaça do gozo. Desta forma, ao relacionarmos o caso com a teoria, foi-nos possível localizar que o desejo da histérica está além de suas demandas e que nada pode lhe ser dado com a finalidade de aplacar sua constante e insaciável rede de queixas. Ela traz como características o ideal de perfeição, o discurso idealista, a marca da insuficiência. A histérica mostra que frente à sexualidade não há saber, e a sexualidade fala desse desencontro, desse desejo insatisfeito.

Ao falar de sua falta de apetite, de seus vômitos, a paciente aponta para a anorexia nervosa, um dos mais freqüentes sintomas na mulher moderna. Não há demanda de objeto, mas de amor. Ao recusar o alimento ela faz existir algo além do objeto, que é o amor. A psicanálise nos mostra que “o anoréxico come nada”, porque como nos ensina Lacan, se põe a pensar o que é o comer e deixa ver a “radical inadequação do pensamento à realidade do sexo”.6 E deixa de ver porque com isso ela faz com que seu desejo se mantenha na insatisfação e seu gozo advenha da privação. “Gozo a menos”, na expressão de Freud, que o diferencia do “gozo a mais” da neurose obsessiva.

Portanto, ao falar da histeria e da estratégia do desejo insatisfeito, fala-se também da questão da anorexia, um sintoma contemporâneo, como já dissemos, onde o sujeito, indiferente aos riscos de vida que seus atos obstinados acarretam, segue comendo nada, um sofrimento tipicamente histérico. A anoréxica mantém o seu saber fora de sua fala. Ela se torna tanto escrava do não comer, quanto do seu não dizer. Mas por que ela não pode, ou o que ela não pode dizer? Sua boca vazia e fechada denota uma crise em relação ao impossível de dizer. É impossível dizer tudo, mas algo é impossível de ser dito. Este é um tema delicado, cada caso é um caso, cada mulher tem sua história específica que a leva a uma viagem, muitas vezes sem volta, que leva a um lugar obscuro da realidade e que tem mecanismos muito próprios para poder voltar. O desejo da anoréxica, em geral mulheres jovens, é querer que a insatisfação esteja em toda parte, que só exista insatisfação, tanto da necessidade quanto do desejo. A anorexia consiste em dizer “não, não quero comer para não me satisfazer, e não quero me satisfazer para ter certeza de que meu desejo permanecerá intacto”.7 Vemos, portanto que a anorexia pode ser vista como um grito contra qualquer satisfação e uma obstinada manutenção do estado geral de insatisfação e desta forma, percebemos que para a anoréxica, o que contraria o desejo é a satisfação ao nível da necessidade, é a invasão do sexual no orgânico, é uma forma radical do sujeito afirmar seu desejo de comer nada.

A histérica, de uma maneira geral, vive inevitavelmente num estado latente de insatisfação que não se restringe unicamente ao registro sexual, mas que se estende para totalidade da vida, e geralmente isto é feito de maneira dolorosa e sofrida. No entanto, a despeito desse sofrimento, a histérica agarra-se à sua insatisfação, porque esta lhe garante a inviolabilidade fundamental de seu ser. Quando mais insatisfeita ela está, mais protegida das ameaça de um gozo que para ela pode ser um risco de desintegração e loucura.

 

Referência Bibliográfica

ASSOUN, Paul-Laurent (1983).”Freud e a Mulher”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993.

DOR, Joël (1989). “Introdução à Leitura de Lacan”.Porto Alegre: Artes Médicas.

FREUD, Sigmund

-(1893[1895]) – “Estudos sobre a histeria”. IN: Obras completas, v.II. Rio de Janeiro: Imago,1969.

-(1896) – “Carta 52”. IN: Obras completas, vol.II. Op. cit.

-(1897) – “Carta 69”. IN: Obras completas, vol. III. Op. cit.

-(1905) – “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. IN: Obras completas, vol. II. Op. cit.

-(1905 [1901]) – “Fragmento da análise de um caso de histeria”. IN: Obras completas, vol. VII. Op. cit.

-(1923)- “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”. IN: Obras completas, vol. XIX. Op. cit.

-(1931) – “Sexualidade feminina”. IN: Obras completas, vol XXI.Op. cit.

-(1937)- “Construções em análise”. IN: Obras completas, vol XXIII. Op.cit.

LACAN, Jacques

-(1953). “Função e campo da fala e da linguagem”. IN: Os Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

-(1999[1967]). O seminário, livro 14: “a lógica da fantasia”. Inédito.

-(1964). O seminário 11: “os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

ISRAEL, Lucien (1998). “El goce de la histérica”. IN: Cadernos de Psicologia. UFMG,vol.1,nº1.

NASIO, Juan-David (1991). “Cinco Lições sobre a teoria de Jacques Lacan”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

POLLO,Vera (2003). “Mulheres histéricas”. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.

 

Notas

1 Bertha Pappenheim (1860-1936), caso clínico do Dr. Joseph Breuer, foi publicado em 1893/95 nos “Estudos sobre a histeria”. Anna O. pensada sempre como a primeira “paciente” da história da psicanálise, tornou-se um de seus mitos fundadores.

* Até o início do século XIX na Europa, os sintomas histéricos eram classificados pela medicina, na ausência de lesões orgânicas, como sendo da ordem da auto-sugestão, da simulação.

2 Israel, L. 1998

3 Póllo, 2003.

4 Assoun, 1993.

5 Lacan. 1985

6 Lacan. Seminário Inédito.

7 Nasio. 1991.