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A perspectiva histórica da subjetividade: uma exigência para la Psicologia atual.

Ana Mercês Bahia Bock1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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A tradição da Psicologia, no Brasil, tem sido marcada pelo compromisso com os interesses das elites e tem se constituído como uma ciência e uma profissão para o controle, a categorização e a diferenciação. Poucas têm sido as contribuições da Psicologia para a transformação das condições de vida, tão desiguais em nosso país.

A colonização do Brasil, por Portugal, foi caracterizada fundamentalmente pela exploração, o que exigiu a construção de um forte aparelho repressivo. As idéias psicológicas produzidas neste período, por representantes da igreja ou intelectuais orgânicos do sistema português, terão a marca do controle. Vamos encontrar produções que buscam aumentar o controle sobre as mulheres, as crianças e os indígenas.

No século XIX, o Brasil deixa de ser colônia e transforma-se em império. As idéias psicológicas vão ser produzidas principalmente no âmbito da medicina e da educação.

Com a vinda da Corte portuguesa vamos ter duas conseqüências fundamentais:

O século XIX vai assistir, assim, ao surgimento das idéias de saneamento e higienização das cidades, higienização que será entendida como material e moral. Busca-se uma sociedade livre da desordem e dos desvios.

As idéias psicológicas puderam colaborar significativamente no trabalho da educação e da higienização moral.

A educação será marcada por práticas autoritárias e disciplinares. A escola vai surgir como um lugar de disciplina e rigor moral, caracterizando-se por uma educação autoritária e disciplinadora. A medicina, pela criação de hospícios como asilos higiênicos e de tratamento moral (em 1842 é inaugurado no RJ o hospício Pedro II; em 1852 em SP o asilo Provisório de Alienados da cidade de SP). A sociedade dominada pela ideologia da ordem e da higienização.

O final do século XIX trouxe à República, a riqueza cafeeira e o desenvolvimento do pólo econômico no sudeste. A psicologia adquiria o estatuto da ciência autônoma na Europa e, em seguida, nos Estados Unidos.

Na educação, o pensamento está marcado pelo movimento da Escola Nova que coloca o indivíduo como eixo de sua construção e dá ênfase a preocupação cientificista, transformando as escolas em verdadeiros laboratórios.

As idéias psicológicas foram também associadas à administração e à gestão do trabalho, baseadas no pensamento taylorista.

E a industrialização no Brasil vai fazer novas exigências à psicologia que, com a experiência da psicologia aplicada à educação, pode colaborar significativamente com um conhecimento que possibilitava a diferenciação das pessoas para a formação de grupos mais homogêneos nas escolas e a seleção de trabalhadores adequados para a empresa.

As guerras trouxeram o desenvolvimento dos testes psicológicos, instrumentos estes que viabilizaram esta prática diferenciadora e categorizadora da psicologia. E foi com este lugar social que a psicologia se institucionalizou no Brasil, sendo reconhecida em 1962 como profissão.

Esta pequena retrospectiva mostra que a Psicologia esteve comprometida com os interesses das elites brasileiras. Uma profissão que, quando atingiu camadas de baixo poder aquisitivo, nas empresas, nas escolas e na saúde, esteve sempre a serviço do controle, da higienização, da discriminação e da categorização que permitiam melhorar a produtividade, o lucro; permitiam melhorar as condições de vida das elites brasileiras, que sempre fizeram política, nesse país, a partir exclusivamente de seus interesses.

Esta Psicologia “tradicional” se desenvolveu e se fundamentou em concepções universalizantes e naturalizantes da subjetividade. Idéias que pensavam o homem e seu mundo psíquico de forma a entendê-lo como um ser natural, dotado de capacidades e características da espécie e que, inserido em um meio adequado, poderia ter seu desenvolvimento. Um homem que é responsável pelo seu desenvolvimento e pelo seu sucesso ou fracasso. O esforço de cada um era a garantia do desenvolvimento adequado.

São estas idéias que vamos desenvolver aqui para podermos fazer a crítica a universalização e naturalização do homem, buscando uma perspectiva histórica para a Psicologia.

A visão liberal de Homem

O liberalismo, ideologia fundamental do capitalismo, nasceu com a revolução burguesa para revolucionar a ordem feudal e se instituiu para garantir a manutenção da ordem que se instalava.

A burguesia constituiu as idéias liberais para se opor à ordem feudal: uma ordem baseada na existência de uma hierarquia no universo; um mundo pensado como estável, ordenado e organizado pela vontade divina.

Um mundo pronto no qual a verdade se revelava aos indivíduos. A hierarquia no universo se refletia na hierarquia entre os homens. Um mundo paralisado, no qual cada um já nascia no lugar no qual deveria ficar. Um universo que tinha a Terra como seu centro. Um mundo de fé e dogmas religiosos que ofereciam aos homens as idéias prontas e os valores certos para serem adotados. Um mundo que desconheceu individualidades, impedindo que os sujeitos se constituíssem como tal. Um mundo que não precisou de uma Psicologia.

Assim, como oposição a estas idéias do feudalismo, a perspectiva liberal tem como um de seus elementos centrais a valorização do indivíduo: o individualismo. Cada indivíduo é um ser moral que possui direitos derivados de sua natureza humana. Somos indivíduos e somos iguais, fraterno e livres, com direito à propriedade, à segurança, à liberdade e à igualdade.

A visão liberal quebrava a estabilidade do mundo, sua hierarquia e suas certezas. O indivíduo estava agora no centro e poderia e deveria se movimentar. E por que surgiam estas idéias liberais?

Porque o capitalismo precisava destas idéias; precisava pensar o mundo como em movimento, para explorar a natureza em busca de matérias-primas e precisava dessacralizar a natureza. O capitalismo precisava do indivíduo, como ser produtivo e consumidor. A Terra já podia então tomar seu humilde lugar no universo. A verdade já podia ser plural. O mundo estava posto em seu movimento. O homem também estava em seu movimento. E neste mundo, agora incerto, o homem se viu frente à possibilidade de ser, de pensar e de fazer. A escolha tornava-se uma exigência e um elemento da condição humana. Escolher entre várias possibilidades e escolher diferentemente de outros permite o desenvolvimento de uma noção de indivíduo e conseqüentemente uma noção de eu entre os homens.

Fertilizando estes novos elementos vamos assistir ao desenvolvimento da noção de vida privada. Estudos interessantes, existentes hoje, mostram como a vida coletiva vai dando lugar a um espaço privado de vida. As casas vão modificando sua arquitetura para reservar locais privados para os indivíduos; os nomes vão se individualizando; marcas vão sendo colocadas em roupas, guardanapos, lençóis permitindo identificação. A vida do trabalho vai saindo da casa para a fábrica, modificando o caráter da vida pública. A casa vai se tornando lugar reservado à família, que dentro de casa, vai também dividindo espaços e permitindo lugares mais individuais e privados. Os banheiros saem dos corredores para se tornarem lugares fechados e posteriormente individualizados.

A noção de eu e a individualização vão nascendo e se desenvolvendo com a história do capitalismo. A idéia de um mundo “interno” aos sujeitos, da existência de componentes individuais, singulares, pessoais, privados vai tomando força, permitindo o desenvolvimento de um sentimento de eu. A possibilidade de uma ciência que estude este sentimento e este fenômeno também é resultado deste processo histórico. A Psicologia vai se tornando necessária.

As idéias liberais, construídas no decorrer do desenvolvimento do capitalismo vão permitir a construção de uma determinada Psicologia. Essas idéias se caracterizam fundamentalmente por pensar o homem a partir da noção de natureza humana. Uma natureza que nos iguala e exige liberdade, como condição para o desenvolvimento das potencialidades das quais somos dotados como seres humanos. Importante notar que o liberalismo propiciou com estas idéias de igualdade natural entre os homens, o questionamento das hierarquias sociais e desigualdades características do período histórico da feudalismo.

Ao homem deveriam ser dadas as melhores condições de vida para que seu potencial natural pudesse desabrochar. Frente às enormes desigualdades sociais do mundo moderno, o liberalismo produziu sua própria defesa, construindo a noção de diferenças individuais decorrentes do aproveitamento diferenciado que cada um faz das condições que a sociedade “igualitariamente” lhe oferece.

Assim, as condições históricas deste período permitiram o surgimento da Psicologia e do próprio fenômeno psicológico, como hoje está constituído. As idéias “naturalizadoras” do liberalismo serão responsáveis pela concepção de fenômeno psicológico que se tornará dominante na Psicologia. Para tratar deste assunto, escolhemos trazer alguns dados da pesquisa realizada por Bock (1999) sobre o significado do fenômeno psicológico do fenômeno psicológico entre os psicólogos de São Paulo.

Na publicação de tese de doutorado, Bock (1999) relata que encontrou em questionário aplicados a 44 psicólogos, muitas definições para o fenômeno psicológico: “acontecimento organísmicos, manifestações do aparelho psíquico, individualidade, algo que ocorre na relação e é o que somos, conflitos pulsionais, confusão mental, manifestação do homem, pensar e sentir o mundo, o homem e relação com o meio, consciência, saber-se indivíduo, o que se mostra, subjetividade, funções egóicas, existência intersubjetiva, experiências, vivências, loucura, distúrbio, o próprio homem, evento estruturantes do homem, comportamento, engrenagem de emoção, motivação, habilidades e potencialidades, experiências emocionais, psique, pensamento, sensação, emoção e expressão, entendimento de si e do mundo, manifestação da vida mental, tudo que é percebido pelos sentidos, é consciente e é inconsciente”.(Bock, 1999 pag. 173)

Cabe ainda trazer alguns dados a mais deste trabalho de Bock. Os psicólogos utilizam-se de chavões para designar o fenômeno psicológico:

Ainda elementos recorrentes nas respostas aos questionários que indicam elementos de uma conceituação consensual entre os psicólogos:

Mas que coisa é esta, o fenômeno psicológico?

Ora é processo, ora é estrutura, ora manifestação, ora relação, ora é conteúdo, ora é distúrbio, ora experiência. É interno, mas com relação com o externo. É biológico, é psíquico e é social; é agente e é resultado; é fenômeno humano, relacionado ao que denominamos “eu”.

O fenômeno psicológico seja lá qual for sua conceituação aparece descolado da realidade na qual o indivíduo se insere e mais ainda, descolado do próprio indivíduo que o abriga. Esta é a noção: algo que se abriga em nosso corpo, do qual não temos muito controle; visto como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos qualquer possibilidade de controlá-lo; algo que inclui “segredos” que nem eu mesmo sei; algo enclausurado em nós que é ou contém um “verdadeiro eu”.

E aqui cabe falarmos da relação deste fenômeno psicológico com o meio social e cultural. Esta relação é afirmada como necessária e importante por muitos psicólogos; no entanto, é vista como uma relação na qual o “externo”(mundo social) impede e dificulta o pleno e livre desenvolvimento de nosso mundo “interno”(psicológico). O mundo social é um mundo estranho ao nosso eu. Um lugar, no qual temos que estar e por isto nos resta a tarefa de nos adaptarmos. E a história deste aparato psicológico passa a ser a história da sua adaptação ao mundo social, cultural e econômico. Trabalhar, relacionar-se, aprender, fazer são atividades desta adaptação. Amar, emocionar-se, perceber, motivar-se são vistas também como possibilidades humanas que se desenvolvem, ou melhor, se atualizam(pois já eram potencializadas) neste mundo externo.

Um fenômeno abstrato, visto como característica humana. Um fenômeno que existe em nós, como estrutura, processo, expressão, ou qualquer de suas conceituações, porque somos humanos e ele pertence a nossa natureza. Fica então naturalizado o fenômeno psicológico. Algo que lá está como possibilidade, quando nascemos; algo que deverá ser fertilizado por afeto, estimulações adequadas e boas condições de vida, mas que lá está, pronto para desabrochar.

Em defesa de uma visão histórica do fenômeno psicológico

A Psicologia Sócio-Histórica, que toma como base a Psicologia histórico-cultural de Vigotski (1896-1934), se apresenta desde seus primórdios como uma possibilidade de superação destas visões dicotômicas. O discurso de Vigostki, no II Congresso Pan-Russo de Psiconeurologia, em 1924, sobre o método de investigação reflexológica e psicológica, demonstra isto com clareza, ao fazer a crítica a posições que foram consideradas reducionistas e ao incentivar a produção de uma Psicologia dialética.

A psicologia sócio-histórica tem inerente a ela a possibilidade de crítica. Não apenas por uma intencionalidade de quem a produz, mas por seus fundamentos epistemológicos e teóricos.

Fundamenta-se no marxismo e adota o materialismo histórico e dialético como filosofia, teoria e método. Nesse sentido, concebe o homem como ativo, social e histórico. A sociedade, como produção histórica dos homens que, através do trabalho, produzem sua vida material. As idéias, como representações da realidade material. A realidade material, como fundada em contradições que se expressam nas idéias. E a história, como o movimento contraditório constante do fazer humano, no qual, a partir da base material, deve ser compreendida toda produção de idéias, inclusive a ciência e a psicologia.

A Psicologia Sócio-Histórica não trabalha com a concepção liberal de homem e de fenômeno psicológico. Acredita que o fenômeno psicológico se desenvolve ao longo do tempo. Assim:

Portanto, para a Sócio-Histórica falar do fenômeno psicológico é obrigatoriamente falar da sociedade. Falar da subjetividade humana é falar da objetividade onde vivem os homens. A compreensão do “mundo interno” exige a compreensão do “mundo externo”, pois são dois aspectos de um mesmo movimento, de um processo no qual o homem atua e constrói/ modifica o mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a constituição psicológica do homem.

As capacidades humanas devem ser vistas como algo que surge após uma série de transformações qualitativas. Cada transformação cria condições para novas transformações, em um processo histórico, e não natural. O fenômeno psicológico deve ser entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na relação com o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade humana. Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se confundirem. A linguagem é mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicológico é um mundo em relação dialética com o mundo social. Conhecer o fenômeno psicológico significa conhecer a expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um processo de conversão do social em individual; de construção interna dos elementos e atividades do mundo externo. Conhecê-lo desta forma significa retirá-lo de um campo abstrato e idealista e dar a ele uma base material vigorosa. Permite ainda que se supere definitivamente visões metafísicas do fenômeno psicológico que o conceberam como algo súbito, algo que surge no homem, ou melhor, algo que já estava lá, em estado embrionário, e que se atualiza com o amadurecimento humano. O homem e o fenômeno psicológico pensados como sementes que se desenvolvem e desabrocham.

E por que a psicologia sócio-histórica é crítica a estas perspectivas?

Porque tais perspectivas fazem uma psicologia descolada da realidade social e cultural que é constitutiva do fenômeno psicológico. E isto é uma questão importante, porque é desta “descolagem” que se constitui o processo ideológico da psicologia. Passamos a contribuir significativamente para ocultar os aspectos sociais do processo de construção do fenômeno psicológico em cada um de nós. Fazemos ideologia.

Ideologia como definida por Charlot é “um sistema teórico, cujas idéias têm sua origem na realidade, como é sempre o caso das idéias; mas que coloca, ao contrário, que as idéias são autônomas, isto é, que transforma em entidades e em essências as realidades que ele apreende, e que, assim, desenvolve uma representação ilusória ao mesmo tempo daquilo sobre o que trata e dele próprio; e que, graças a essa representação ilusória, desempenha um papel mistificador, quase sempre inconsciente(o próprio ideológico é mistificado, acredita na autonomia de suas idéias): as idéias assim destacadas de sua relação com a realidade servem, com efeito, para construir um sistema teórico que camufla e justifica a dominação de classe. Ideológico não significa, portanto, errôneo(....). Aliás, é porque uma ideologia é um sistema ilusório e não um sistema de idéias falsas que é social e potencialmente eficaz (Charlot, 1979, p.32).

Chauí nos ajuda a completar o conceito quando afirma que a operação da ideologia é a “criação de universais abstratos, isto é, a transformação das idéias particulares da classe dominante em idéias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa universalidade das idéias é abstrata porque não corresponde a nada real e concreto, visto que no real existem concretamente classes particulares e não a universalidade humana. As idéias da ideologia são, pois, universais abstratos”.(Chauí, 1981, p.95). A ideologia é, assim, uma representação ilusória que fazemos do real. O ilusório da ideologia está em que parte da realidade fica ocultada nas constituições ideais. Na psicologia, ao construirmos as noções e teorizações sobre o fenômeno psicológico tem ficado ocultada a sua produção social. Com isto, as conseqüências são danosas do ponto de vista das possibilidades da psicologia contribuir para a denúncia e a transformação das condições de vida constitutivos do fenômeno.

O fenômeno psicológico, como qualquer fenômeno não tem força motriz que lhe seja própria. É na relação com o mundo material e social que se desenvolvem as possibilidades humanas. Claro, há um corpo biológico que se instituiu como elemento básico da relação e é nele que se processará o que estamos chamando de fenômeno psicológico. Esta relação com o mundo, através da atividade dos sujeitos, se torna essencial para que algo ocorra em nós.

Temos usado a imagem do Barão de Munchhausen para expressar uma compreensão da ideologia que se constitui a partir da psicologia.

“Uma outra vez quis saltar um brejo mas, quando me encontrava a meio caminho, percebi que era maior do que imaginara antes. Puxei as rédeas no meio de meu salto, e retornei à margem que acabara de deixar, para tomar mais impulso. Outra vez me saí mal e afundei no brejo até o pescoço. Eu certamente teria perecido se, pela força de meu próprio braço, não tivesse puxado pelo meu próprio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que segurava fortemente entre os joelhos.” (Raspe, p.40)

É esta a melhor imagem que encontramos para designar esta ideologia do esforço próprio de cada um para desenvolver-se, para desenvolver o potencial contido em sua natureza. A Psicologia tem assim, há anos, contribuído para responsabilizar os sujeitos por seus sucessos e fracassos; temos pensado e defendido condições de vida como canteiro apropriado ou não para o desabrochar de potencialidades; temos acreditado e contribuído para classificar e diferenciar pessoas pelas suas características e dinâmicas psicológicas; temos criado ou contribuído para reforçar padrões de conduta, que interessam à sociedade manter, como conduta necessária ao “bom desenvolvimento das pessoas”. A psicologia tem reforçado formas de vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade e de saúde, contribuindo para a construção de programas de recuperação e assistência àqueles que não “conseguem(ao puxarem pelos seus próprios cabelos)” se desenvolver nesta direção. Tem transformado o diferente, o “fora do padrão dominante” em anormal.

A psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômeno psicológico, falar de vida, das condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os homens. A psicologia tem, ao contrário, contribuído significativamente para ocultar estas condições. Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexualidade; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das características machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se de habilidade e aptidões de um sujeito sem se falar das suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicólogo sem falar do cultural e do social. Na verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia!

Reverter este processo de construção da psicologia como ciência e profissão implica a nosso ver redefinir o fenômeno psicológico.

E por que este aspecto faz da psicologia sócio-histórica uma perspectiva crítica? Porque já não poderemos mais pensar a realidade social, econômica e cultural como algo fora do Homem, estranho ao mundo psicológico que aparece como algo que o impede, o anula ou o desvirtua. O mundo social e o mundo psicológico caminham juntos em seu movimento e a psicologia para compreender o mundo psicológico terá obrigatoriamente que trazer para seu âmbito a realidade social na qual o fenômeno psicológico se constrói; e por outro lado, ao estudar o mundo psicológico estará contribuindo para a compreensão do mundo social. Trabalhar para aliviar o sofrimento psicológico das pessoas possibilitará e exigirá do psicólogo um posicionamento ético e político sobre o mundo social e psicológico.

A psicologia sócio-histórica pretende assim ser crítica porque posicionada. A psicologia sócio-histórica exige a definição de uma ética e exige uma visão política sobre a realidade na qual nosso “objeto de estudo e trabalho” se insere. A psicologia sócio-histórica carrega, intrinsecamente à sua forma de pensar a realidade e o mundo psicológico, esta perspectiva e a necessidade deste posicionamento.

As idéias liberais serão responsáveis pelo desenvolvimento da concepção de fenômeno psicológico dominante na Psicologia. Um fenômeno concebido de forma abstrata, enclausurado no homem, descolado da realidade social (a não ser como oportunidades para o desabrochar do potencial); algo em nosso corpo, do qual não temos muito controle; visto como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos qualquer possibilidade de controlá-lo; algo que inclui “segredos” que nem eu mesmo sei; algo enclausurado em nós que é ou contém um “verdadeiro eu”.

Cabe ressaltar que nesta concepção a sociedade aparece como algo que se contrapõe aos movimentos naturais do humano. A sociedade é algo oposto aos nossos interesses naturais. O “Mundo externo” impede, dificulta o pleno desenvolvimento de nosso “mundo interno”. Mundo interno e mundo externo ficam definitivamente separados. Ciências diferentes são criadas para dar conta destas realidades tão diversas. A Psicologia, enquanto ciência do mundo interno abandona qualquer vínculo mais profundo com a realidade social e cultural, para pensar o homem isolado; para estudar o fenômeno psicológico como algo já existente no homem que independe da relação com o mundo cultural para se constituir.

A Prática profissional surge então carregada de uma perspectiva corretiva e terapêutica. Não poderia ser outra, pois se já somos o que vamos ser, dada a natureza humana da qual somos dotados, a Psicologia só poderia se constituir enquanto prática profissional como um conhecimento e um conjunto técnico que detecta desvios do desenvolvimento humano (em relação ao que é concebido como natural), propondo-se como algo que reencaminha, realinha, adapta, cura.

A Psicologia se associa a idéia de doença, mas nosso objeto de trabalho não é o corpo que adoece. Nosso objeto é o mundo simbólico. Nosso objeto é o registro que os sujeitos fazem do mundo que os cerca, do cotidiano. Esse mundo não fica doente. Esse mundo se estrutura, se desetrutura, sofre, mas não fica doente, no sentido de adquirir mal, moléstia ou enfermidade. Só uma noção naturalizante do mundo psicológico poderia ter chegado a essas noções. Pois, se o mundo psicológico é natural, é da espécie, é de nossa natureza humana, já está lá e será desenvolvido com o passar do tempo e das experiências. Aí sim, pode-se pensar que ele adoece.

A conseqüência mais evidente de tudo isto é que a Psicologia torna-se uma ideologia, pois ajuda a acobertar as condições sociais que constituem o homem. Todas as qualidades e todos os defeitos dos humanos são analisados da perspectiva naturalizante. E tudo que foge à regra, ao esperado, ao comum é patologizado. Abrimos mão de nossa possibilidade de, a partir do sofrimento psicológico, denunciar as condições de vida que desigualam, desestruturam e geram sofrimento.

A Psicologia se instituiu assim em nossa sociedade moderna como uma ciência e uma profissão conservadoras que não constrói, nem debate um projeto de transformação social.

É hora de rompermos. É hora de fazermos a crítica contundente a esta perspectiva liberal de homem. É hora de abandonarmos definitivamente as visões naturalizantes de homem e de mundo, adotando perspectivas históricas.

Necessitamos rever nossos conhecimentos e práticas a partir de noções que entendam o homem como um ser constituído ao longo de sua própria vida, ao longo de sua ação sobre o mundo, na interação com os outros homens, inseridos em uma cultura que acumula e contém o desenvolvimento de gerações anteriores.

O fenômeno psicológico não pertence mais à natureza humana. O homem, ao construir a cultura e a sociedade, se libertou de sua “natureza”, ultrapassando seus limites e características. O fenômeno psicológico como registro, no homem, de sua relação com o mundo, na medida em que este mundo é social e cultural, passa a se caracterizar por esta condição. Assim, o fenômeno psicológico não preexiste no homem. Se desenvolve conforme o homem se insere na sociedade, nas relações e na cultura. Ali estão as possibilidade do homem se tornar humano. A humanidade do homem está na cultura, nas relações sociais e nas formas de produção da vida. É lá que o homem vai buscar os elementos para sua constituição.

A concepção histórica do fenômeno psicológico permite que se pense o homem e o mundo em permanente movimento; permite que se construa uma prática profissional e saberes em Psicologia colados a um projeto de sociedade; permite que o psicólogo perceba claramente sua profissão como um fazer social, que incentiva um determinado projeto de transformação social. A concepção histórica do fenômeno psicológico contribui significativamente para a superação de perspectivas estigmatizadoras que a Psicologia desenvolveu. O homem é visto como uma construção do homem. O controle, a categorização e a diferenciação deixam de ser entendidas como naturais, para serem lidas como um determinado compromisso da Psicologia com as necessidades e projetos sociais.

Os processos a serem analisados são da objetivação do homem em seu mundo e o da apropriação do mundo, pelo homem, para se constituir. O homem atua, pondo no mundo social seus conteúdos individuais. O homem se objetiva no mundo e faz isto junto com os outros homens. Assim, a humanidade vai se constituindo no mundo, nos objetos, na cultura, nas formas de sobrevivência e de produção humanas. De lá, que o homem vai retirar o material para se constituir. Vai se apropriar da humanidade que construiu ao transformar o mundo. Vai retomar para si a humanidade que construiu. Assim, o homem se constrói ao construir o seu mundo.

Pensar esse processo de construção da subjetividade como um movimento e uma relação do homem com o mundo, no qual nem homem nem mundo existem a priori (em um certo sentido), é superar visões naturalizantes e ideológicas na Psicologia. O mundo psicológico que estudamos não é natural; não está lá pronto; não possui conteúdos universais, nem processos e estruturas prontas para serem movimentadas ou preenchidas.

Pensar desta forma a subjetividade nos coloca em uma outra relação com o mundo social. Passamos a perceber a necessidade de nos posicionarmos sobre qual homem e qual sociedade queremos estimular. Isto porque, passamos a pensar que o mundo psicológico não está pronto e nem mesmo tem direção para seu desenvolvimento dada naturalmente. Nossas intervenções profissionais são portanto direcionamentos. Qual mundo queremos estimular? Qual sociedade? Qual subjetividade? Qual homem?

Ao mesmo tempo que esta tarefa, de definirmos o projeto de nossa intervenção, se coloca como obrigatória, outro ganho acontece. Passamos a nos ver, como profissionais, que através de nossas intervenções atuamos no mundo; mudamos o mundo; nos objetivamos no mundo. Nos vemos, então, como sujeitos que transformam o mundo a partir de sua prática profissional. Isto passa a exigir que façamos de nosso projeto profissional, um projeto político, de construção do âmbito coletivo.

A Psicologia brasileira precisa se voltar para a sociedade. Precisa se perceber como uma intervenção política na sociedade. A história de nossa ciência e de nossa profissão mostra que sempre estivemos comprometidos com interesses sociais. Sempre fizemos de nossa ciência e de nossa profissão um instrumento político. No entanto, a revisão histórica mostra que estivemos comprometidos com os interesses das elites brasileiras. Queremos, com a perspectiva histórica na Psicologia, reverter esse processo e nos comprometermos com outros setores da população. Queremos acreditar que é possível pensar que os sofrimentos psíquicos que temos e que nossos conteúdos e estruturas psíquicas são reflexo de um mundo de competição, de discriminação, de estigmatização, de diferenciação... e que querer trabalhar para mudar esses quadros é, também, acreditar que um mundo melhor é possível. É em prol desse projeto, de um mundo melhor, que queremos colocar nossa profissão.

Referências Bibliográficas:

Antunes, Mitsuko A M. – A Psicologia no Brasil- leitura histórica sobre sua constituição- Enimarco Ed./ EDUC, São Paulo, 1999
Bock, Ana M.B. –Aventuras do Barão de Munchhausen na Psicologia –Ed.Cortez/EDUC, São Paulo, 1999
Chauí, Marilena- O que é a ideologia- coleção Primeiros Passos- Ed.Brasiliense, 2ª edição- São Paulo, 1981
Lowy, Michael- As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen – Ed.Busca Vida, São Paulo, 1987
Lowy, Michael –Ideologias e Ciências Sociais: elementos para uma análise marxista Ed.Cortez, 4ª edição, São Paulo, 1988
Warde, Miriam J. –Liberalismo e Educação –tese de doutoramento , PUC São Paulo, 1984

Notas

Ana Mercês Bahia Bock é doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professora da equipe de psicologia sócio-histórica da PUCSP; diretora da Faculdade de Psicologia da PUCSP de 93 a 2001 e presidente do Conselho Federal de Psicologia de 97 a 2001. Regresar al texto

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