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Relacionamentos afetivos na literatura científica: uma revisão integrativa sobre a noção de conjugalidade

 

Fabio Scorsolini-Comin
Prof. Dr. Manoel Antonio dos Santos

Universidade de São Paulo
Brasil

 

Os autores agradecem ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para a realização desta pesquisa. E-mail:

 

Resumo

O objetivo é apresentar uma revisão integrativa da literatura científica acerca do tema conjugalidade. Pelas bases LILACS, SciELO e PEPsic, foram selecionados artigos indexados entre 1970-2008. Com base nos critérios de seleção, foram recuperadas 14 publicações. Os estudos abordam a conjugalidade não apenas dentro do casamento, mas na coabitação, transições para o casamento e parentalidade, recasamentos, separações e uniões homoafetivas. Dentre as perspectivas teóricas utilizadas, prevaleceu o referencial psicanalítico e construcionista social. Conclui-se que a crise da conjugalidade na pós-modernidade tem gerado novas possibilidades psicoterapêuticas para casais, acompanhando as mudanças que têm redimensionado a instituição do casamento. As pesquisas se pautam nesse movimento de desconstrução/dissolução e reordenamento dos arranjos familiares, que engendram novas organizações socioculturais, bem como transformações dos modos de subjetivação e das modalidades de vinculação social, afetiva e sexual.

Palavras-chave: relações conjugais; casamento; literatura de revisão.

 

Abstract

The objective of the study is to present an integrative review of scientific literature about conjugality. The key-word utilized was conjugality in bases LILACS, SciELO and PEPsic. Had been selected articles in period 1970-2008. By the selection criterion, had been recovered 14 publications. The studies not only approach the conjugality  inside of the marriage, but in the cohabitation, the transitions for the marriage, and the parentality, in the remarriages, separations, beyond the homoaffectives unions. Amongst the theoretical perspectives used in the selected studies, the psychoanalitical and social construcionism referential were prevailed. We conclude that the crisis of the conjugality in after-modernity has generated new psychotherapeutics possibilities for couples, following the changes contemporaries who had resized the institution of the marriage. The research was regulated in this movement of deconstruction/dissolution and reoriented the familiar arrangements, which are producing new sociocultural organizations, as well as in the transformations in subjectivizing standards and the modalities of social, affective and sexual entailing.

Key-words: marital relations; marriage; review literature.

 

Resumen

El objetivo es presentar una revisión de la literatura científica referente al concepto de relaciones maritales. En las bases LILACS, SciELO y PEPsic, fueron seleccionados los artículos publicados entre 1970 e 2008. Con base en los criterios de la elección, fueron analizadas 14 publicaciones. Los estudios no sólo se acercan de la conyugalidad dentro de la unión, sino también a las transiciones para la unión y la parentalidad, las segundas nupcias,las separaciones y las uniones homo-afectivas. Entre las perspectivas teóricas mas usadas, están el referencial psicoanalítico y el construccionista. Una conclusión es que la crisis de las relaciones maritales ha generado las nuevas posibilidades de las terapias de parejas, siguiendo los cambios que tienen redimensionado la institución de la unión. La investigación se  produce en este movimiento de deconstrucción/disolución y del reordenamiento de los arreglos familiares y organizaciones socioculturales, así como en las transformaciones de las maneras de subjetivación y de las modalidades de la vinculación social, afectiva y sexual.

Palabras clave: relaciones maritales; unión; literatura de la revisión.

 

 

1. Introdução

A resposta amadurecida para o problema da existência humana, segundo Fromm (1995), estaria na realização da unidade interpessoal, da fusão com outra pessoa, ou seja, do amor. Para este autor, o ato de amor seria o meio único de conhecimento completo, transcendendo o pensamento e as palavras, uma vez que determinaria a relação de alguém com o mundo. Na visão de Furtado (2008), o amor assumiria diversas formas, estando entre elas o conjugal, definido como entrega apaixonada de si, desejo sexual e amizade seletiva. Para Durham (1983), é característico das famílias humanas, em todas as sociedades, o estabelecimento de vínculos sociais que são criados por meio de representações (idéias, sistemas e símbolos) incorporadas nas noções de parentesco e instrumentalizadas pelo casamento. Segundo Cicco, Paiva e Gomes (2005), o estudo da família e dos modelos de relações conjugais da pós-modernidade é fundamental para a compreensão das mudanças ocorridas nas últimas décadas e de suas implicações para o desenvolvimento e amadurecimento dos indivíduos nos contextos familiares atuais.

Na Antigüidade, o casamento estava voltado exclusivamente para a procriação, sendo considerado um bem. A moral cristã, a partir dos séculos XII e XIII, sacramentaliza o matrimônio, havendo também uma explosão discursiva em relação ao desejo. Cada vez mais, a Igreja impunha a relação carnal como obrigatória no casamento, sem a qual ele não teria sentido, condenando todo e qualquer ardor no relacionamento entre os cônjuges, punindo os “excessos” e disciplinando pela interdição de certas regras na interação conjugal, incentivando a função procriadora (Vainfas, 1986; Casey, 1992). A Igreja introduziu no casamento os valores da ascese e da caridade, equilibrando o mal (representado pela cópula) com o bem (representado pela oração e pela idéia do coito procriativo) e fazendo do matrimônio um estado de comunhão. De acordo com Vainfas (1986), o amor no casamento só era considerado “verdadeiro” quando submetido à disciplina da contingência, havendo a constituição de um “modelo cristão” no qual havia a reprovação da discórdia no interior do casal, a supressão da diferença e eliminação da alteridade entre os esposos, salvo no tocante ao poder marital. Portanto, o sentimento amoroso tal como relação entre indivíduos distintos e diferenciados sexualmente, comportando a atração e a igualdade entre os parceiros, estava ausente da concepção cristã de amor conjugal.

Na visão da terapia de casal proposta por Costa (2007), o casamento é um grande sonho que todo indivíduo, desde a infância, almeja realizar. No entanto, no caminho rumo ao encontro com a felicidade conjugal surgem inúmeros obstáculos impostos pelas vicissitudes da vida e pelos problemas emocionais humanos. Giddens (1995), ao discutir a transformação da intimidade nas sociedades ocidentais, ressalta que os ideais do amor romântico, relacionados à liberdade individual e à auto-realização, desligam os indivíduos das relações sociais e familiares mais amplas, demarcando com mais clareza a esfera do relacionamento conjugal, que passa a ser assim mais valorizada e priorizada. Enfatiza que o amor romântico, desde sua origem, suscita a questão da intimidade e supõe uma comunicação psíquica, um encontro que tem um caráter reparador. O outro preenche um vazio que o indivíduo, muitas vezes, sequer reconhece, a relação amorosa se instala e o indivíduo fragmentado sente-se inteiro (Féres-Carneiro, 1998a; Furtado, 2008).

Amazonas e Braga (2006) abordam o casamento na contemporaneidade, enfatizando que as transições ocorridas nos âmbitos cultural, econômico, político e social têm afetado profundamente as estruturas relacionais e familiares. Entre elas, as autoras elencam: mudanças demográficas e transição epidemiológica, em especial a maior longevidade humana; a participação crescente da mulher no mercado de trabalho; o divórcio e as organizações familiares distintas da família nuclear tradicional; o controle sobre a procriação a partir dos anticonceptivos; e as transformações ocorridas nos papéis parentais e de gênero. Para Perlin e Diniz (2005), o estilo de vida contemporâneo apresenta um conjunto de características contraditórias quando confrontadas com os ideais dos relacionamentos estáveis e do contrato matrimonial clássico. Cada vez mais os casais sofrem pressão para manterem valores e padrões morais tradicionais, como a efetivação do contrato matrimonial e o exercício da parentalidade, ao passo que o meio familiar é valorizado como o locus de realização de todas as expectativas emocionais e pessoais. Por outro lado, são forçados a se adequarem às transformações sociais, tais como as exigências do mercado de trabalho, a valorização do crescimento individual, da independência financeira e da flexibilidade no exercício dos papéis de gênero.

Atualmente, concebe-se que o casamento pode ser um espaço de desenvolvimento das individualidades, delimitando um processo de individuação entre os parceiros (Gomes & Paiva, 2003). Féres-Carneiro (1998a) descreve como o casal contemporâneo é confrontado por duas forças paradoxais: pelas tensões entre individualidade e conjugalidade. Para esta autora, o desafio de um casal reside fundamentalmente no fato de o casamento ou a união ser um palco no qual devem se entrelaçar as individualidades de cada membro, operando-se a construção de um local em comum, o que ela define como conjugalidade. O modelo único que cada par cria é denominado “absoluto do casal”, conceito que determina os seus limites, ou seja, concebe o casal como sendo composto por duas pessoas e o seu modelo único (Caillé, 1991). Para Féres-Carneiro (1998a), este conceito recebe o nome de identidade conjugal, o que na literatura específica é intitulado conjugalidade.

Féres-Carneiro (2003) destaca que as características individualistas da família e do casal contemporâneos enfatizam a importância da qualidade das relações estabelecidas entre os seus membros. Valorizar os espaços individuais significa, muitas vezes, fragilizar os espaços conjugais, assim como fortalecer a conjugalidade demanda, quase sempre, ceder diante das individualidades, o que situa as pessoas frente à necessidade de equilibração dos pólos individuais e conjugais. Assim, para a referida autora, o casamento seria um ato dramático, no qual dois estranhos, portadores de um passado individual diferente, se encontram e se redefinem. O drama do ato é internamente antecipado e socialmente legitimado muito antes de ele acontecer na biografia dos indivíduos. O casal constrói, assim, não somente a realidade presente, mas reconstrói a realidade passada, fabricando uma memória comum que integra os dois passados individuais. 

A despeito do crescente volume de publicações, há escassez de revisões sistemáticas de literatura dedicadas à temática da conjugalidade. O presente estudo se propõe a preencher essa lacuna, na tentativa de contribuir para o avanço do conhecimento na área.

 

2. Objetivo

Apresentar uma revisão integrativa da literatura científica acerca do tema conjugalidade, buscando evidenciar o perfil dos trabalhos publicados em fontes de impacto, de modo a possibilitar um maior direcionamento das pesquisas sobre esse construto, discutir as tendências apontadas por essas publicações, bem como as perspectivas de produção na área. 

 

3. Método

De acordo com Beyea e Nicoll (1998) e Fernandes (2000), uma revisão integrativa sumariza pesquisas passadas e tira conclusões globais de um corpo de literatura de um tópico em particular, permitindo a construção de uma análise ampla da literatura, que contribui para discussões sobre métodos e resultados de pesquisa, assim como reflexões sobre a realização de futuras pesquisas. Seguindo os procedimentos de Ganong (1987), como o estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão dos estudos e análise crítica dos resultados, embora os métodos para a condução de revisões integrativas variem, existem padrões a serem seguidos. Na operacionalização dessa revisão utilizamos as seguintes etapas, inspiradas nas propostas de Ganong (1987): seleção da questão temática, estabelecimento dos critérios para a seleção da amostra, análise e interpretação dos resultados, resgate dos trabalhos na íntegra e apresentação da revisão, a partir dos temas emergentes (eixos temáticos).

 

3.2. Bases consultadas e unitermo de busca: Visando assegurar uma ampla abrangência desta revisão, foram consultadas as seguintes bases de dados que reúnem trabalhos nacionais e internacionais: LILACS, SciELO e PEPsic, a partir do unitermo conjugalidade (conjugality). A escolha por apenas este unitermo objetivou o delineamento de pesquisas unicamente voltadas para a definição e emprego deste construto, haja vista que outros conceitos guardam relações de proximidade com o mesmo, o que poderia comprometer o mapeamento de como a conjugalidade vem sendo investigada e concebida na literatura científica.

 

3.3. Critérios de inclusão e exclusão dos trabalhos: Para esta revisão foram excluídas as seguintes categorias de trabalhos: artigos não indexados, teses, dissertações, resenhas, livros e capítulos de livros. A fim de incluir apenas trabalhos que passaram por um processo rigoroso de avaliação, foram selecionados apenas artigos indexados (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Essa escolha se deve ao fato de que em uma das bases (LILACS) há registros de trabalhos desse tipo (não apenas artigos indexados) e que, muitas vezes, podem não passar por um processo de avaliação por pares, o que garante a qualidade do trabalho e de apreciação científica. Foram excluídas, ainda, publicações que se distanciam do tema, como estudos relacionados ao casamento entre pessoas soropositivas com enfoque no enfrentamento da enfermidade. No que concerne ao período de publicação, foram selecionados artigos publicados entre os anos de 1970 e 2008. Em relação ao idioma, a busca bibliográfica restringiu-se aos trabalhos publicados nos idiomas: português, inglês, espanhol e francês.

 

4. Resultados e discussão

Na base PEPsic foram registrados seis trabalhos. A partir da leitura dos resumos e utilizando os critérios de inclusão e exclusão, selecionaram-se três trabalhos. Outros três foram excluídos, pois versavam sobre temáticas diferentes, como violência doméstica, prevenção de infecção pelo HIV no casamento e influência do tratamento oncológico do filho na dinâmica conjugal. Na base SciELO foram encontrados 18 trabalhos, dos quais foram selecionados seis – dentre os quais dois já haviam aparecido na busca pela PEPsic. Entre os 10 artigos excluídos figuram estudos sobre direito reprodutivo (um trabalho), homossexualidade (três), aids no casamento (um), identidade social de imigrantes japoneses (um), violência doméstica (um), gênero (um), além de duas resenhas de livros. Na base LILACS foram registrados 45 trabalhos. Destes, 31 foram excluídos: 14 sobre HIV, três sobre homossexualidade e bissexualidade, outros três sobre direitos sexuais, dois sobre violência conjugal, um sobre identidade social, um sobre câncer de mama, além de cinco livros e duas teses. Dos 14 selecionados, oito já haviam sido encontrados nas demais bases. Assim, selecionaram-se seis trabalhos encontrados exclusivamente na base LILACS.

Em relação ao ano de publicação dos trabalhos, 66,6% dos estudos (10) foram publicados a partir do ano 2000, com concentração no ano de 2003 (cinco artigos) e 33,3% na década de 1990 (cinco trabalhos), o que revela a atualidade da discussão acerca da conjugalidade. Em termos dos objetos de investigação e dos contextos de estudo dos trabalhos selecionados sobre a conjugalidade, pode-se observar um movimento de se estudar não apenas esta noção dentro do casamento (Bozon, 2003; Garcia & Tassara, 2003; Magalhães & Féres-Carneiro, 2003; Cicco, Paiva & Gomes, 2005; Vargas, 2006), mas também na coabitação (Menezes & Lopes, 2007a, 2007b), nas transições para o casamento (Menezes & Lopes, 2007a), na transição da conjugalidade para a parentalidade (Menezes & Lopes, 2007b; Magagnin et al., 2003), nos recasamentos (Pascual, 1992; Féres-Carneiro, 1998a; Vargas, 2006) e também nas separações conjugais (Féres-Carneiro, 2003), além das uniões homossexuais (Féres-Carneiro, 1997). No que concerne às características dos estudos, encontram-se trabalhos de revisão teórica (Magalhães, Féres-Carneiro, 2003; Diniz-Neto, Féres-Carneiro, 2005) e investigações empíricas (Magagnin et al., 2003; Féres-Carneiro, 2003), além de estudos de casos clínicos (Cicco et al., 2003; Féres-Carneiro, 1995, 1997) e estudos de caso coletivo (Menezes & Lopes, 2007b).

Também foram recuperados trabalhos com enfoque quantitativo, que utilizaram instrumentos como questionários (Magagnin et al., 2003), mas a maioria aplicou entrevistas semi-estruturadas (Menezes & Lopes, 2007a; Féres-Carneiro, 2003; Pascual, 1992). Entre as perspectivas teóricas utilizadas nos trabalhos selecionados, tem-se a prevalência do referencial psicanalítico (Féres-Carneiro, 1995, 1997, 2003; Magalhães & Féres-Carneiro, 2003), com referência a teóricos como Freud (Magalhães & Féres-Carneiro, 2003), Jung (Vargas, 2006) e Winnicott (Cicco et al., 2003). O construcionismo social é referido em um dos trabalhos (Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005). A terapia de casal é uma das estratégias mais utilizadas para a investigação da conjugalidade (Féres-Carneiro, 1998b; Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005). Deve-se destacar a alta prevalência de trabalhos da pesquisadora Féres-Carneiro (1995, 1997, 1998a, 1998b), o que a credencia como a principal referência brasileira nos estudos sobre conjugalidade.

 

5. Análise crítica dos trabalhos selecionados

 

5.1. A conjugalidade em transição: um conceito líquido?

Os movimentos de transição para o casamento, para a parentalidade e para a coabitação formam o eixo principal dos trabalhos agrupados nesta categoria. Os estudos aqui elencados abordam a conjugalidade sendo configurada nessas transições, o modo como ela se modifica, se constitui e se organiza.

Nessa temática, Menezes e Lopes (2007a) analisaram como os casais coabitantes e os não-coabitantes experimentam a transição para o casamento. Partindo de uma visão sistêmica, defendem o pressuposto de que o ser humano não está isolado, mas faz parte e sofre influências constantes do meio social em que está inserido. Sua experiência é determinada pela interação constante com o ambiente. Nesse sentido, o meio familiar, o primeiro com o qual os indivíduos estabelecem contato, tornou-se o foco central dessa abordagem na busca de compreensão do desenvolvimento e do comportamento humano. O casamento, por sua vez, ao delimitar o início da constituição de um número significativo de famílias, vem sendo abordado por alguns pesquisadores. Entretanto, a transição para o casamento e suas peculiaridades, como a fase inicial do desenvolvimento do casal, tem sido relativamente pouco considerada pelos teóricos que se ocupam em estudar os casais e as famílias, de acordo com revisão de Menezes e Lopes (2007a).

Segundo essas autoras, acredita-se que o período que compreende os meses anteriores e o primeiro ano de relacionamento conjugal é bastante relevante e especial. Nesse período, o casal depara-se com uma mudança real de status social, aparece a necessidade de administração da conjugalidade com a individualidade, as expectativas e motivações anteriores são postas (ou não) em prática e há a necessidade de reorganizar os relacionamentos com as famílias de origem de cada um dos cônjuges (Menezes & Lopes, 2007a). Na construção da conjugalidade, as autoras referem a regulação que deve ocorrer com as individualidades de cada cônjuge, além das expectativas depositadas no casamento, as quais têm um papel importante tanto no momento da escolha do futuro cônjuge, quanto no estabelecimento da relação conjugal propriamente dita. Desse modo, Menezes e Lopes (2007a) afirmam que, em nossa cultura, ainda prevalece uma visão romântica do casamento, considerado como meio de libertação e obtenção de felicidade total. O indivíduo idealiza que o outro será o responsável pela realização de seus desejos e pela compensação de suas carências afetivas. A escolha conjugal costuma ser motivada, desse modo, pela necessidade de satisfação de desejos e instintos, por meio da relação com objetos simbólicos.

Em outro estudo das mesmas autoras, Menezes e Lopes (2007b) analisaram a relação conjugal, durante a transição para a parentalidade, sob dois enfoques: a avaliação que cada casal faz de sua relação e a interação comunicacional que estabelece nos diferentes momentos da transição. As autoras resgatam o conceito de ciclo de vida da família para estudar o percurso natural dos casais no decorrer do tempo, corroborando outras pesquisas na área. Entre os processos críticos que determinam as principais transições desenvolvimentais pelas quais os casais costumam passar, as autoras atestam que a transição para a parentalidade é uma das maiores mudanças por que o sistema familiar pode passar. É o momento em que os cônjuges, antes apenas um casal, tornam-se pais, progenitores de uma nova família. O nascimento do primogênito, em especial, é a “primeira experiência de parentalidade vivida pelo casal” (p.83). Ainda segundo Menezes e Lopes (2007b), alguns estudos recentes também têm enfatizado que a transição para a parentalidade acarreta a diminuição na satisfação conjugal. Especificamente nesse trabalho resgatado, um dos aspectos que se acredita ser influente na forma como cada casal vivencia a transição para a parentalidade é a sua maneira de se comunicar. A comunicação estabelecida pelos membros do casal pode indicar mais do que seu conteúdo explicitamente expresso.

Em outro estudo recuperado, também sobre a transição da conjugalidade para a parentalidade, Magagnin et al. (2003) investigaram longitudinalmente este evento em relação ao ajustamento diádico e à satisfação conjugal de casais primíparos. O relato compreendeu os dados coletados na primeira medida e, portanto, se caracterizou por um exame de corte transversal realizado nos primeiros meses de gravidez de 41 casais primíparos. Os resultados mostraram correlação inversa entre a idade dos sujeitos e o fator expressão de afeto do ajustamento diádico. Além disso, os valores elevados das médias dos diversos fatores de ajustamento e satisfação corroboraram o clima esperado para o período focalizado, segundo a literatura internacional sobre o tema no período da gravidez.

 

5.2. O movimento da individualidade à conjugalidade

Os trabalhos alinhados nesta categoria trazem à baila a discussão da conjugalidade em diferentes perspectivas: conjugalidade em oposição à noção de individualidade; conjugalidade constituída por duas ou mais individualidades; conjugalidade e individualidade como duas noções em constante interpenetração e indissociabilidade.

Pascual (1992) investiga a relação entre a individualidade e a conjugalidade no recasamento a partir de dados coletados em pesquisa conduzida com pessoas da classe média carioca. A tensão entre individualidade e conjugalidade, à época do estudo, era bastante investigada em casamentos, mas não nos recasamentos, que são definidos como uma nova construção da conjugalidade a partir de uma experiência anterior de casamento. Os resultados da pesquisa demonstram diferenças significativas, neste sentido, entre pessoas casadas em primeiras núpcias e as recasadas. Pascual (1992) destaca que, uma vez que a relação marital é caracterizada por forte presença de atitudes polarizadas entre a identidade pessoal de cada cônjuge e a identidade conjugal, o casal ou cria rígidos limites entre si ou se funde em uma relação em que as fronteiras da individualidade desaparecem.

Abordando o conceito de conjugalidade, Féres-Carneiro (1998a) afirma que todo casal encerra, ao mesmo tempo, duas individualidades e uma conjugalidade, ou seja, o casal contem dois sujeitos, dois desejos, duas inserções no mundo, duas percepções do mundo, duas histórias de vida, dois projetos de vida, duas identidades individuais que, na relação amorosa, convivem com uma conjugalidade, um desejo conjunto, uma história de vida conjugal, um projeto de vida de casal, uma identidade conjugal. A autora resgata a definição de Philippe Caillé (1991), segundo a qual o casamento contemporâneo é feito da lógica de “um e um são três”. Para este autor, segundo Féres-Carneiro (1998a), cada casal cria seu modelo único de ser casal, que ele chama de “absoluto do casal”, que define a existência conjugal e determina seus limites. A sua definição de casal contém, portanto, os dois parceiros e seu “modelo único”, seu absoluto. Féres-Carneiro (1998a) redefine esse mesmo conceito como identidade conjugal, o que é mais reconhecido na literatura científica como conjugalidade.

Magalhães e Féres-Carneiro (2003), em um trabalho teórico, analisaram as relações entre conjugalidade, identificação e o papel dos ideais no processo de produção das subjetividades dos parceiros. Com base em uma leitura psicanalítica da conjugalidade, consideram que a trama identificatória conjugal, originada no momento da escolha amorosa, reatualiza vivências edípicas e pré-edípicas e, ao mesmo tempo, representa uma oportunidade de recriação do eu. O percurso do processo identificatório, denominado de trama pelas autoras, justifica-se devido ao entrelaçamento dos “eus” na conjugalidade. Essa trama ocupa uma posição central na abordagem psicanalítica, não somente pelo fato de a identificação operar na constituição da subjetividade, destacando os efeitos estruturais do complexo edípico, como também por abrir possibilidades para outros desdobramentos e explorações teóricas. Tais desenvolvimentos abrangem desde a “concepção das instâncias psíquicas até o papel da relação transferencial e seus desdobramentos identificatórios” (Magalhães, Féres-Carneiro, 2003, p.41-42).

Vargas (2006), a partir da noção de que o casamento é propiciador da individuação, descreve como a união conjugal está delineada na atualidade e as principais razões que determinaram as grandes transformações pelas quais o casamento passou. Discute a importante questão das separações e recasamentos e das vicissitudes pelas quais passam cônjuges e filhos nas famílias reconstituídas, a partir da perspectiva junguiana. Trata-se de um artigo clínico que traz à baila as discussões da contemporaneidade a partir das observações do cenário da psicoterapia. Na perspectiva junguiana, o casamento é abordado pelo autor a partir da noção de que o vínculo conjugal pode estagnar a vida dos cônjuges quando mal conduzido. Segundo Vargas (2006), quando um cônjuge só se expressa em função do outro, se “explica” como reação ao outro, é sinal de que o vínculo foi distorcido para o lado da definição em função do outro e se tornou sufocante e paralisante. Nesse caso, o casamento se torna uma “não-vida”. Ainda segundo o estudo mencionado, todo ser humano caminha naturalmente em direção a uma individuação, processo de manifestação, na vida, do potencial inato e congênito da pessoa. Esse movimento de diferenciação se dá por meio da busca de um indivíduo para encontrar seu próprio caminho de salvação: seu sentido e seu destino de vida. Essa busca é variada, mas sempre permeada de confrontos com sofrimentos e mortes simbólicas, o que impõe a elaboração de lutos pelas perdas inevitáveis.

Féres-Carneiro (1995) investigou os padrões de interação conjugal, verificando as relações existentes entre a manifestação da individualidade e da conjugalidade, os diferentes tipo de escolha amorosa e a possibilidade de realizar mudanças na interação conjugal ao longo do processo de psicoterapia, levando à ruptura ou à manutenção do casamento. Foram estudados 16 casos de casais em terapia. As análises realizadas mostraram que a dimensão de individualidade estava menos presente nos quatro casais em que a colusão predominante era a narcísica e nos quatro casais em que predominava a colusão oral, na qual a necessidade de fusão dos membros do casal é intensa. A colusão sádico-anal da relação dominar/ser dominado predominou em cinco casais e, nestes, a dimensão de individualidade estava mais presente. A ruptura ou não do casamento tem uma relação menos significativa com a presença maior ou menor da individualidade e da conjugalidade na interação, estando relacionada mais significativamente com a maneira como tais dimensões podem se transformar e como, dentro de cada tipo de colusão amorosa, o casal, ao longo do processo terapêutico, é capaz de efetuar mudanças no jogo conjunto que envolve seus membros.

 

5.3. Conjugalidade: um conceito pós-moderno?

Nesta categoria foram agrupados os trabalhos que abordam de que modo a conjugalidade se constitui na pós-modernidade, compreendendo de que maneira as transformações sociais e culturais interferem, justificam e explicam o modo como as pessoas estabelecem suas vinculações, notadamente a partir da observação da demanda e das vicissitudes da terapia de casal.

Féres-Carneiro (1998b) aborda as tendências atuais da demanda na clínica do casal e da família. Enfatizam-se as transformações sociais ocorridas nas últimas décadas e suas conseqüências para a estrutura e a dinâmica da família e do casal. Na tentativa de caracterizar a demanda clínica, ressaltam-se algumas questões e certas configurações conjugais e padrões de individualidade e conjugalidade, famílias recasadas, famílias monoparentais, casais e famílias com crianças com sintomas e casais homossexuais. Diniz-Neto e Féres-Carneiro (2005) destacam, em seu artigo, a crise da conjugalidade na pós-modernidade e indicam novas possibilidades psicoterapêuticas. São traçadas as características do movimento pós-moderno, ressaltando suas relações com a produção de novas formas de subjetividade e de conjugalidade. As mudanças da conjugalidade são compreendidas em suas implicações para a prática da psicoterapia de casal em um enfoque construcionista social. Aspectos das rupturas na epistemologia do “si-mesmo” são apontados como possibilidades de novas direções psicoterapêuticas. Segundo revisão crítica dos autores, essa crise psicossocial e institucional da conjugalidade se revela em vários pontos, tais como na diminuição do número de casamentos, oficiais ou não. Acerca da desconstrução da conjugalidade na pós-modernidade, Diniz-Neto e Féres-Carneiro (2005) afirmam que as mudanças na instituição do casamento não são novas, sendo que na crise contemporânea parece ocorrer uma mudança nos padrões do relacionamento entre indivíduos, com um aumento da mobilidade social, tornando possível que relações insatisfatórias possam ser resolvidas com o rompimento conjugal. Na opinião dos pesquisadores, baseados em ampla revisão da literatura científica, não parece que a instituição casamento esteja agonizante, mas que provavelmente estamos, também, em busca de padrões mais satisfatórios e funcionais de relacionamento amoroso, que propiciem melhores condições para o processo de diferenciação e desenvolvimento psicológico e emocional dos parceiros (Diniz-Neto & Féres-Carneiro, 2005, p.134). Assim, afirma-se que não se deve pensar a crise da conjugalidade contemporânea como um momento de perda de uma instituição muito bem adaptada e saudável, mas como uma ruptura com padrões psicossociais que trazem consigo normas sociais e familiares disfuncionais, a serviço de uma ideologia dominante.

 

5.4. O casamento contemporâneo: conjugalidade, aliança, família e sexualidade

Nesta categoria, os trabalhos abordam especificamente o casamento contemporâneo e o modo como ele se constitui e contribui para discussões correlatas, como a sexualidade, a separação, o recasamento, a reconfiguração da família e a criação dos filhos.

Féres-Carneiro (1998a) fomenta uma discussão sobre o casamento contemporâneo, ressaltando a relevância institucional do mesmo, descrevendo como os casais são confrontados por duas forças paradoxais, ou seja, pelas tensões entre individualidade e conjugalidade. Aborda-se o tema da manifestação da aliança e da sexualidade no casamento e no recasamento contemporâneo, levantando o advento da separação conjugal e suas conseqüências para os membros do casal e da família. Descrevem-se as características da família recasada e suas possibilidades de interação funcional, abordando também a importância da relação conjugal para o desenvolvimento emocional dos filhos. Nesse mesmo artigo, a autora ainda trabalha a noção de sexualidade dentro do casamento, retomando célebres trabalhos na área, como os de Lévi-Strauss, Flandrin e Foucault. A autora também retoma um trabalho anterior para evidenciar algumas diferenças quanto à manifestação das dimensões de aliança e de sexualidade em casais de primeiro casamento e em casais recasados. Em reação aos resultados obtidos, pode-se destacar que, em termos de escolha conjugal, no grupo de primeiro casamento a aliança assume um papel mais significativo do que a sexualidade, enquanto esta é mais relevante para os recasados. Em relação ao relacionamento sexual, em ambos os grupos o mesmo é considerado muito importante para o casal, mas a sexualidade aparece de forma mais personalizada e criativa entre os recasados, para os quais são maiores as demandas e as expectativas em relação à atividade sexual.

Em outro artigo recuperado, Cicco, Paiva e Gomes (2005) apresentaram um estudo que trata das inter-relações entre a imaturidade dos pais e o processo de criação dos filhos. Baseiam-se no relato de uma experiência clínica, na qual se constatou que a formação de sintomas nas crianças era decorrente da dificuldade enfrentadas pelo casal parental na constituição da conjugalidade e no estabelecimento dos papéis de cada um no interior da família, além de forte interferência das famílias de origem. O referencial teórico winnicottiano foi privilegiado, traçando um paralelo entre o desenvolvimento da criança e o da família, delineando-se uma articulação com as características da sociedade atual. Os autores resgataram, nesse trabalho, que Winnicott discutiu o papel da família no estabelecimento da saúde individual, questionando a capacidade do homem de atingir a maturidade emocional fora do contexto familiar. Esta maturidade emocional seria entendida em termos de saúde. Ainda na visão desse autor, o casamento e a constituição de uma família nem sempre são sinais de maturidade parental. Para tanto, deve-se estudar os motivos para que cada pessoa constitua a sua família, o que pode se dar em um momento de maior ou menor maturidade. Winnicott destaca ainda que o casamento deve ser, ao mesmo tempo, uma ruptura em relação aos pais e à família de origem e um prolongamento da idéia orientadora da estrutura familiar (Cicco et al., 2005). Por meio do relato de um caso clínico, os autores abordam o quanto a saúde da família e sua capacidade de promoção de crescimento de seus membros dependem da qualidade da relação estabelecida pelo casal parental.

O estudo de Garcia e Tassara (2003) identificou e analisou os tipos de problemas vividos no casamento referidos por mulheres casadas há mais de 15 anos e pertencentes a camadas econômicas média e alta. As autoras partem da premissa de que a configuração do que constitui problema é delineada a partir da existência de um padrão de desejabilidade projetado para a relação conjugal. Tal padrão é histórica e socialmente definido e delimita aquilo a que se deve aspirar e aquilo que não se vai alcançar em uma relação afetivo-sexual. A aproximação ou distanciamento desse padrão definiria, então, o que é problema e as possibilidades e limites para sua superação. O que fazer e o como fazer são questões que são reflexivamente definidas e estão relacionadas “às transformações que vêm ocorrendo no cenário social e que incidem sobre a dinâmica familiar” (Garcia & Tassara, 2003, p.127). As autoras afirmam que o conjunto de problemas é definido considerando-se a lógica dialética da inclusão/exclusão. Toda situação ou pessoa que ameace ou coloque em risco uma condição de desejabilidade – ou percepção de inclusão – pode constituir-se em problema (p.128). A constatação de exclusão ou iminência de exclusão leva o indivíduo a desenvolver ou a buscar instrumentos de ação que permitam superar ou minimizar a situação.

Por fim, Bozon (2003) atesta que um laço novo se estabeleceu entre sexualidade e vida conjugal nas últimas décadas do século XX. Tradicionalmente, o direito à atividade sexual era adquirido com o estatuto de sujeito casado; hoje em dia, o intercâmbio sexual passou a ser o motor interno da conjugalidade. No entanto, essa inversão não gerou uma transformação completa das relações de gênero. Segundo o autor, as mudanças conjugais contemporâneas traduzem a passagem de uma definição institucional antiga do casamento para uma definição interna e amplamente subjetiva do casal. Tal evolução já vinha se processando ao longo do tempo, mas sofreu uma aceleração nas últimas décadas. O processo da entrada do afeto nas relações conjugais/ familiares fez surgir, por exemplo, o ideal e a prática do casamento por amor, que se tornaram dominantes no século XX. Deste modo, “(...) o casamento por amor implica, de um lado, que o casamento não depende mais das negociações entre famílias, mas da escolha pessoal dos cônjuges, e, de outro, que a única razão da escolha é o sentimento amoroso” (Bozon, 2003, p.133).

Ainda segundo Bozon (2003), nas últimas décadas o ideal do casamento por amor se dissolveu progressivamente no de casal por amor, por causa do enfraquecimento do casamento institucional, o que não equivale a um desaparecimento nem a um declínio da aspiração à união. O que caracteriza a união contemporânea não é só essa referência ao sentimento amoroso, mas também a importância crescente que assumiram, ao lado de um domínio conjugal em relativa decadência, “os domínios e interesses individuais dos que se unem, e também o papel essencial que assume a sexualidade” (p.133). A análise das mudanças dos comportamentos na França contemporânea, objeto de estudo do artigo, mostra sem dúvida uma aproximação das trajetórias sexuais femininas e masculinas, e o desenvolvimento de um valor de reciprocidade entre parceiros. Mas o exame mais preciso do confronto dos homens e das mulheres nas várias etapas do intercâmbio sexual sugere a permanência de uma divergência de gênero:  tanto a socialização adolescente como o curso da vida conjugal continuam sustentando interpretações muito assimétricas da sexualidade, nas quais o desejo feminino tem menos legitimidade do que o masculino. Se a sexualidade se tornou a linguagem básica do relacionamento, como afirma Bozon (2003), isso não se traduz em uma revolução nas relações de gênero que teria modificado radicalmente os lugares de cada um. As experiências sexuais dos indivíduos no mundo contemporâneo continuam a ser estruturadas por pares de oposição em tensão permanente.

 

5.5. A família do vizinho: conjugalidade nas uniões hétero e homossexuais

Um dos trabalhos selecionados e que constitui uma categoria única de análise, abordou a constituição da conjugalidade nos relacionamentos homosssexuais em comparação com os heterossexuais. Neste estudo, Féres-Carneiro (1997) investiga o processo de escolha amorosa em homens e mulheres hétero e homossexuais das camadas médias da população, de diferentes faixas etárias, em diversas situações amorosas – namoro, casamento (coabitação estável), separação e recasamento (segunda ou subseqüente coabitação estável); as características das relações dos conflitos conjugais por eles estabelecidas; e o papel atribuído à terapia de casal na resolução dos conflitos conjugais. Foram estudados dois grupos: 240 heterossexuais (53 solteiros, 64 casados, 63 separados e 60 recasados) e 116 homossexuais (49 solteiros, 36 casados, 19 separados e 12 recasados). Na avaliação da escolha amorosa foram utilizados 26 atributos dispostos em escalas de avaliação e entrevistas semi-estruturadas, contendo tópicos referentes a dimensões relevantes da interação conjugal. Os resultados mostraram algumas diferenças entre homens e mulheres de ambos os grupos e algumas semelhanças no processo de escolha amorosa dos sujeitos hétero e homossexuais. Tais resultados são relevantes para a prática clínica da terapia de casal, possibilitando uma melhor compreensão das especificidades da relação amorosa em diferentes tipos de conjugalidade.

No referido estudo Féres-Carneiro (1997) retrata a realidade da vida a dois, tanto em casais heterossexuais quanto homoafetivos. A demanda de casais homossexuais pela terapia de casal traduz um fenômeno contemporâneo na clínica. Em casais heterossexuais, a autora afirma que a dimensão da sexualidade é mais valorizada e está mais presente no recasamento do que no primeiro casamento. Nos casais homossexuais atendidos, observa-se uma maior valorização da vivência da sexualidade pelo par gay, enquanto que o par de lésbicas dá maior importância à amizade e ao companheirismo. A partir da análise dos resultados, a autora constatou que homens e mulheres heterossexuais valorizam as mesmas qualidades em seus parceiros, ou seja, a fidelidade, a integridade, o carinho e a paixão. Tais qualidades são igualmente valorizadas pelas mulheres homossexuais, enquanto que os homens homossexuais tendem a enfatizar a importância da atração física e da capacidade erótica de seus parceiros. Na comparação do que foi mais importante na escolha amorosa para os sujeitos hétero e homossexuais, observou-se uma semelhança nas respostas de homens e mulheres heterossexuais e mulheres homossexuais, que valorizaram os atributos fiel, companheiro, íntegro, carinhoso e apaixonado, e uma diferença na avaliação dos homens homossexuais que, em vez da paixão e da fidelidade, valorizaram o respeito à privacidade e a capacidade erótica de seus parceiros. 

 

5.6. O efeito polvilho: a conjugalidade dissolvida

A literatura aponta que a conjugalidade é uma noção que não vem sendo estudada apenas quando os relacionamentos amorosos se constituem no modelo social de casamento ou recasamento, mas também quando se aborda o final do relacionamento, ou seja, na separação conjugal. Assim, nesta categoria, Féres-Carneiro (2003) investiga como homens e mulheres das camadas médias da população vivenciam o processo de dissolução do casamento e buscam reconstruir suas identidades individuais, após a separação conjugal. A autora refere que a clínica da terapia de casal tem constatado que é cada vez maior o número de casais que procuram atendimento psicológico trazendo como questão principal o tema da separação. Nessa procura, Féres-Carneiro (2003) destaca que quase sempre são as mulheres que manifestam o desejo de se separarem, enquanto os maridos, na maior parte das vezes, desejam manter o casamento. Resgatando trabalhos anteriores de sua autoria, Féres-Carneiro conclui que há maior possibilidade das mulheres realizarem mudanças, assim como de romperem o casamento. Segundo revisão da autora, o casamento implica a construção de uma nova identidade para os cônjuges, que vai se construindo por meio das interações estabelecidas entre eles. Quando duas pessoas decidem que viverão juntas, cada uma terá de se modificar internamente e se reorganizar. No processo de separação, a identidade conjugal, construída no casamento, vai aos poucos se desfazendo, levando os cônjuges a uma “redefinição de suas identidades individuais” (p.367). Em outro trabalho, Féres-Carneiro (1998a) pontua que a separação conjugal corresponde à dissolução da conjugalidade. Na sociedade contemporânea os indivíduos se divorciam não porque o casamento não é considerado importante, mas porque sua relevância é tão grande que os cônjuges não aceitam que ele não corresponda às suas expectativas. Assim, é justamente a dificuldade dessa exigência que o divórcio reflete. Não é por outra razão que quase sempre os divorciados buscam o recasamento. Assim, o recasamento seria um espaço para a reconstrução da conjugalidade. Para Féres-Carneiro (1998a), o compromisso da terapia é com a promoção da saúde emocional dos membros do casal e não com a manutenção ou a dissolução do casamento. Assim, a terapia, enquanto possibilidade de intervenção, não pode direcionar um casal para qualquer dos pólos do conflito, mas respeitar os desejos e as expectativas dos cônjuges em relação à manutenção ou não de seus vínculos conjugais.

 

6. Conclusão

Acerca da definição de nosso objeto de investigação, a revisão integrativa empreendida apontou que os movimentos de transição da e para a conjugalidade são trazidos em muito dos trabalhos selecionados, nos quais não se concebe a conjugalidade apenas como um estado (como o casamento ou a parentalidade nos estudos de Menezes e Lopes, 2007a; 2007b), mas como um movimento que se dá a partir da(s) individualidade(s) (Féres-Carneiro, 1998a) e é estudado até mesmo na dissolução dos relacionamentos (Féres-Carneiro, 2003). Enfatizamos que, de acordo com Féres-Carneiro (1998a), todo casal encerra, ao mesmo tempo, duas individualidades e uma só conjugalidade, duas identidades individuais que, na relação amorosa, convivem com uma conjugalidade, uma combinação de desejos, um projeto compartilhado e uma história de vida conjugal. Nesse sentido, a conjugalidade, por vezes, é vista como uma construção (Menezes & Lopes, 2007a) e como um fenômeno humano em permanente mudança (Menezes & Lopes, 2007b; Magalhães & Féres-Carneiro, 2003). Nessa construção e reconstrução permanente, a regulação que deve ocorrer com as individualidades de cada cônjuge é também apontada por vários estudos resgatados (Pascual, 1992; Féres-Carneiro, 1998a). Em termos da própria escolha do unitermo utilizado, deve-se investigar a conjugalidade enquanto uma noção relacionada a outras (relações afetivas, casamento, relações conjugais e outras), mas como uma identidade epistemológica própria. A conjugalidade, enquanto um palco para a conjugação de individualidades (e não meramente o estudo de como os casais se formam, convivem, negociam suas diferenças e se constituem), ainda é um campo de estudo específico que vem mobilizando pesquisadores em torno da necessidade de compreender o conceito e apreendê-lo na prática psicológica, como na terapia de casal, que é amplamente referida na literatura.

Nessa construção, Magalhães e Féres-Carneiro (2003) partem do momento da escolha amorosa, que iniciaria a trama identificatória conjugal, reatualizando vivências edípicas e pré-edípicas e, ao mesmo tempo, representando uma oportunidade de recriação do eu. Segundo essas autoras, a conjugalidade dependeria do reconhecimento do objeto de amor como discriminado do eu e da criação de ideais compartilhados. Nesse processo operariam transformações, sendo o casamento um espaço propiciador de individuação, como salientado por Vargas (2006). Deve-se não apenas amadurecer outros estudos sobre a conjugalidade – vide a crescente produção na área e a diversidade dos estudos resgatados – mas também desmistificar a idéia (re)produzida culturalmente de que o casamento é uma instituição feliz e que não aponta para a necessidade de mudanças nos cônjuges, como trazido por Vargas (2006). Vale ainda mencionar a necessidade premente de pesquisas a respeito de novas formas de conjugalidade na contemporaneidade (Féres-Carneiro, 1997), a fim de que se possa compreender o modo como esse conceito tem sido ressignificado em diferentes corpus de análise. Quais as contribuições que os estudos sobre as uniões homoafetivas podem trazer para o desenvolvimento do conceito de conjugalidade? Como a conjugalidade pode ser observada nas escolhas amorosas, nas coabitações, na parentalidade, nos recasamentos e também nos divórcios? Haveria diferentes tipos de conjugalidade ou expressões diversas da mesma?

A pós-modernidade, de acordo com Féres-Carneiro (1998a), vem nos obrigando a operar dentro de novos paradigmas, que se inscrevem dentro da clínica, que deve estar não apenas preparada para acolher novas demandas, como aberta às mesmas. A terapia de casal deve ir além da concepção clássica de duas individualidades e uma conjugalidade, mas mostrar disposição para questionar modelos e refletir sobre formas renovadas e possibilitadoras de novos encontros, perspectivas e enlaces de saberes, sejam quais forem os referenciais de base. E isso não deve se dar apenas a partir da clínica. Nessa vertente, algumas indagações se fazem oportunas: Quais as possibilidades de intervenção que não o modelo estrito da terapia de casal? Pode-se falar em eficácia nas intervenções com casais? Qual o critério de êxito que devemos adotar para avaliar as intervenções com casais? Esses aspectos ainda não foram suficientemente respondidos por esta revisão, o que pode ser devido tanto aos limites da mesma (não se direcionou a busca especificamente para trabalhos de intervenção), quanto à própria carência de trabalhos nessa vertente. Como colocado por Bozon (2003), contemporaneamente o ideal do casamento por amor se dissolveu progressivamente no de casal por amor, em função do enfraquecimento do casamento institucional, o que não equivale a um desaparecimento, nem a um declínio da aspiração à união, mas a uma transformação no modo como as pessoas se unem e iniciam uma vida a dois – ou a três, se resgatarmos a noção de Caillé (1991). A conjugalidade deve ser encarada não a partir da união de individualidades (Féres-Carneiro, 1998a; Féres-Carneiro, 2003), mas da construção de um espaço de coabitação de desejos e de expectativas ora concordantes, ora dissonantes.

A diversidade de contextos e de teóricos abrangidos pelos estudos sobre conjugalidade aponta para as múltiplas vozes que podem se combinar na investigação da conjugalidade. Essa trama de vozes se expressa nessa revisão. Como trazido por Diniz-Neto e Féres-Carneiro (2005), a crise da conjugalidade na pós-modernidade indica novas possibilidades psicoterapêuticas para o tratamento de casais, revelando que as mudanças na instituição do casamento não são novas, mas nosso olhar deve estar atento a esse movimento de contínua desconstrução/dissolução e reconstrução, a partir das novas organizações socioculturais e das transformações no processo de produção das subjetividades, instauradas pela novas formas de vinculação sociais, afetivas e sexuais.

 

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